sexta-feira, dezembro 02, 2011

DESALINHAMENTOS

Faz muitos anos, trabalhei para um judeu alemão que, na sequência da sua fuga ao nazismo, se havia estabelecido em Lisboa,. Uma das suas características mais marcantes era dominar a Língua Portuguesa de forma superior e muito difícil de igualar, o que, se por um lado, levava a quem com ele contactava a admirá-lo, era, por outro lado, motivo de algum despeito. Mais tarde, tive um professor de alemão, austríaco de nascimento, que se casou com uma portuguesa e se apaixonou por Portugal. Por estes exemplos e muitos mais, que seria fastidioso referir, fui-me apercebendo que os estrangeiros que se convertem ao nosso povo são, mais do que o são os naturais, patriotas por inteiro deste lugar e defensores quase religiosos dum passado que assumem e imaginam inteiramente seu, como se uma nova alma os tomasse.

Os portugueses em geral, em contrapartida, têm da sua cidadania uma visão obtusa, da sua História um conhecimento medíocre e, quanto à Pátria, só a sentem até aos limites da aldeia natal. Nos iletrados, sente-se ainda um leve patriotismo emocional, uma certa vontade de vibrar ingenuamente com o que, afinal, menos caracteriza a singularidade do seu lugar; nos letrados, o militantismo pretensioso de todos os modismos vazios – ontem francês ou italiano, hoje predominantemente americano – e uma vontade permanentemente expressa de denegrir tudo o que lhe cheire a português, fá-los pelo menos parecer aquilo que muitas vezes se atrevem mesmo a reivindicar: serem pouco virados para o patriotismo, que é coisa démodé, pois claro.

No entanto, uns e outros detestam – valha-nos isso – que gente estranha os amesquinhe, contrapondo aí inflamações avulsas e mitologias despidas de suporte.

Esta falta duma verdadeira consciência coletiva do ser português, penso que tem a ver com a falta de um autêntico escol, duma elite patriótica capaz de induzir um suporte intelectual aglutinador da emoção dispersa, capaz de fazer compreender que o nacionalismo pode ser – é quase sempre – a negação do próprio patriotismo. É que ser patriota é dizermos: vejam como é bela a nossa terra, apreciem, sentem-se à mesa connosco, comam do nosso pão e bebam do nosso vinho. Ser nacionalista é outra coisa, é dizermos: somos os melhores e não queremos gente estranha ao pé da porta. O nacionalismo baseia-se na exclusão; o patriotismo na assunção da diferença, no amor à diversidade.

Pode dizer-se que o chamado Estado Novo era naciona1ista e que nunca conseguiu fomentar o patriotismo; entre outras razões, por detestar a diferença e ter do escol uma noção provinciana. Assim, aque1es que promoveu como elite intelectual entretiveram-se a reinventar o passado, para dar coerência aos seus espúrios devaneios. Vem deste falso fu1gor a instituição de mitologias que nada acrescentaram ao nosso orgulho, nem tampouco puderam confirmar o pessoano refrão: «O mito é o nada que é tudo.»

Todavia, persistem sequelas. Ainda hoje há muito boa gente que acredita que descende dos lusitanos, sem se interrogar sobre o que terá acontecido às gentes dessas tribos federadas – que nem sequer eram etnicamente homogéneas – depois de os romanos as terem massacrado.

Que sangue nos corre deles, se foram dados por extintos nos finais do século III da nossa era?

Que aconteceu ao sangue de gregos, fenícios, cartagineses, vândalos, suevos, visigodos, etc.?

Que complexos temos nós em relação ao sangue de mouros e judeus? Isto sem falar do muito e indisfarçável sangue negro nos traços fisionómicos de muitos habitantes do Vale do Sado, em especial entre os chamados malteses!

Contudo, a mitologia lusitana podia ter algum suporte se se fizesse uma outra leitura. Quando o neopitagórico renascentista Luís de Camões, quiçá com o intuito de nos deixar o testemunho velado da sua filiação na ordem sufista, cristã e cabalista dos «alumbrados», isto é, iluminados, nos chamou de lusitanos, numa clara alusão a LUZ, e pôs a Lusitânia a ser gerada por um inventado Luso, filho de Baco, quero crer que nunca esperou que levássemos tão à letra – essa letra que mata o espírito – o que era figura de estilo e necessário ocultamento e quiséssemos ostensivamente esquecer quanto de mouro e de marrano nos coube de herança histórica, cultural e genética.

 

Artigo revisto, originalmente publicado no nº 7 da revista «Humanidades», Lisboa, 2002  

                                                                            ABDUL CADRE

OS NOVOS TEMPLOS

Nunca será demais sublinhar que utopia não é aquilo que é impossível de realizar mas tão-só o que ainda não se realizou!

Eis a razão pela qual a utopia pode e deve estimular proficuamente os passos do homem: só o que ainda se não realizou merece verdadeiramente o nosso empenho e o nosso esforço, até porque o que está feito, feito está.

Os demitidos do sonho – e o sonho comanda a vida, como diz Gedeão – caracterizam-se, entre outras coisas, por nos atirarem à cara o rodriguinho pateta do «não sejas utópico», porque, nas suas precárias e cinzentas existências, substituíram os sonhos pelos pesadelos, pela miséria doirada com que a sociedade consumista nos ilude e robotiza a nossa humanidade. Esta sociedade é a realização espúria da mentira colocada no altar profano da verdade, dado esta ser habitualmente amarga para os que vivem sem vontade e aquela parecer doce, sobretudo ser doce na boca dos que se submetem e iludem.

Eis porque nos esvaímos em aparentes e efémeras felicidades, nesses fugazes momentos em que a posse nos possui entre o útil e o fútil.

A lucidez dói fundo sem bálsamo que a alivie. Por isso, Schiller gritava: «Porque me lançaste de olhos abertos na terra dos cegos, para lhes proclamar o vosso oráculo? Levai-me de novo esta agudeza de vista que me enche de tristeza! Tirai-me dos olhos esta luz cruel! Restituí-me a cegueira – as bem-aventuradas trevas dos meus olhos; levai-me, levai-me este dom fatal!»

Os templos onde dantes se cultuavam as inventadas divindades das nossas safadezas, dos nossos remorsos e de algum desejo de ascese foram há muito abandonados pela maioria, que ergue agora outros e novos templos de precários céus palpáveis. São os mini, os super, os híper e os megamercados da nossa conformação, da nossa tangível e falsa felicidade. Eis firmemente assente no chão o céu possível onde somos recompensados à medida da nossa bolsa, que é por ela que se afere o nosso merecimento. Os artigos comprados transformam-se paulatinamente em objetos de culto, círios e velas aromáticas, ex-votos. As prateleiras são facilmente muros de lamentação sobre as quais a nossa bolsa não tem poder e, para que tudo se enquadre na religião do palpável sem utopias nem lirismos, haverá os necessários bodes expiatórios, que serão todos aqueles que afrontem os nossos delírios induzidos.

Que belas catedrais concretas e tangíveis!

De entre esta maioria, destacam-se os iludidos de serem depositários da chama do desejo de altura. Afirmam não pertencer à corrente adormecida, mas estão igualmente infetados de mercado. Por isso, também eles inventam altares que, tal como os supermercados, têm santos para todos os gostos e para todas as bolsas em abundância e futilidade. É ainda e só o reino da quantidade, mas aqui no comércio blasfemo com o Alto e no engano de feira dos incautos. Num mercado e noutro, em tudo isto é o neopaganismo ctónico, desenfreado e inútil, onde tudo cabe e tudo se confunde para uso dos incautos e benefício dos astutos.

Mas não se creia que os incautos são inocentes. Não! Os incautos, tal como os escravos são sempre culpados da servidão a que se prestam, ou contra a qual não se revoltam.

Tampouco a ignorância pode atenuar a culpa, antes a agrava, pois que é bem mais grave que o homicídio, ou o suicídio, porque estes apenas matam o corpo, enquanto aquela mata a própria Alma. Uma Alma leva milhares de anos para atingir a maturidade, enquanto um corpo se faz adulto em uns escassos 25 anos.

Texto ligeiramente reformulado em relação ao original publicado em 2006 no Volume I da revista Lusophia.

ABDUL CADRE

quinta-feira, dezembro 01, 2011

SANTIDADES

 

SE acaso podemos chamar de santo àquele que não peca, então não será exagerado presumirmos que a santidade sirva sobretudo ao santo. Por outro lado – é o prejuízo dos mais –, pode dizer-se que o pecador se enche de remorsos, que é coisa que dói muito na alma e talvez não compense o prazer que o pecado sempre dá. Além disso, numa etimologia possível, remorso significará morrer uma vez mais...

Dum ponto de vista pragmático, bom seria que a santidade fosse social e humanamente útil; que mais do que não praticar o mal fosse sobretudo praticar e ser o bem; que santidade fosse algo de contagiante, de epidémico, sem hipótese de vacina que a debelasse. Que a santidade nunca ficasse fora de moda, que fosse coisa de que todos pudessem servir-se, servindo, sem que tempo algum sobrasse para mortes repetidas, isto é, para o remorso.

Os leitores que me desculpem, mas de santos do ocidente cristão e dos seus congéneres orientais, por mais de que por eles não tenha vindo mal ao mundo, será simpático recordar-lhes os nomes em folhas de calendário, mas creio que pouco mais lhes devemos. Evidentemente que foi bom não terem contribuído – os que não contribuíram – para os males do mundo, mas certamente haverá alguns que melhor fora rasgarmos a folha do dia que os evoca.

Muitos dos aureolados são-no devido aos caprichos humanos, já que o céu não se pronuncia – não pode nem deve – e passaram por aqui como se nunca tivessem existido. Se na renúncia, na omissão, no amor a Deus fora do amor aos homens houver alguma libertação, talvez esses santos, inexistentes fora do nosso remorso, se tenham libertado a si próprios. Talvez! Mas desprezaram a sua e a nossa humanidade. Sobretudo, desprezaram o nosso desterro e não tiveram em conta a nossa própria incomparável e insubstituível libertação. As vias friamente piedosas que escolheram, por intransmissíveis, tornaram-se para nós recordações inúteis e armas de arremesso e constrangimento nas línguas desatadas de pregadores tristes em domingos equivocados. São, objetivamente, instrumentos cruéis do nosso remorso sempre crescente.

Eis porque me é tão cara aquela crença sufi de que bem melhor do que o santo é o sábio, servido este por uma santidade superior que partilha com os mais. O sábio que ascende ao saber real e distribui quanto pode aos famintos de espírito e aos dotados de boa vontade do quinhão que lhe cabe do maná celeste, que é a inteligência pura, é uma semente prodigiosa de humanidade e de futuro.

O sábio mostra, enquanto o santo esconde. O santo vem e o santo vai e só o nome fica, quando fica; pela passagem do sábio muda o mundo, muda o homem e até a matéria bruta se torna um pouco mais compassiva.

O altruísmo do sábio é o contraponto do egoísmo do santo.

ABDUL CADRE

In Diário do Sul

Vendas Novas, 01 de Janeiro de 2010