sábado, janeiro 01, 2011

SANTIDADES

Da rubrica FADO CORRIDO, no Diário do Sul, reproduz-se aqui a seguinte crónica
Vendas Novas, 01 de Janeiro de 2010

SE acaso podemos chamar de santo àquele que não peca, então não será exagerado presumirmos que a santidade sirva sobretudo ao santo. Por outro lado – é o prejuízo dos mais –, pode dizer-se que o pecador se enche de remorsos, que é coisa que dói muito na alma e talvez não compense o prazer que o pecado sempre dá. Além disso, numa etimologia possível, remorso significará morrer uma vez mais...

Dum ponto de vista pragmático, bom seria que a santidade fosse social e humanamente útil; que mais do que não praticar o mal fosse sobretudo praticar e ser o bem; que santidade fosse algo de contagiante, de epidémico, sem hipótese de vacina que a debelasse. Que a santidade nunca ficasse fora de moda, que fosse coisa de que todos pudessem servir-se, servindo, sem que tempo algum sobrasse para mortes repetidas, isto é, para o remorso.

Os leitores que me desculpem, mas de santos do ocidente cristão e dos seus congéneres orientais, por mais de que por eles não tenha vindo mal ao mundo, será simpático recordar-lhes os nomes em folhas de calendário, mas creio que pouco mais lhes devemos. Evidentemente que foi bom não terem contribuído – os que não contribuíram – para os males do mundo, mas certamente haverá alguns que melhor fora rasgarmos a folha do dia que os invoca.

Muitos dos aureolados são-no devido aos caprichos humanos, já que o céu não se pronuncia – não pode nem deve – e passaram por aqui como se nunca tivessem existido. Se na renúncia, na omissão, no amor a Deus fora do amor aos homens houver alguma libertação, talvez esses santos, inexistentes fora do nosso remorso, se tenham libertado a si próprios. Talvez! Mas desprezaram a sua e a nossa humanidade. Sobretudo, desprezaram o nosso desterro e não tiveram em conta a nossa própria incomparável e insubstituível libertação. As vias friamente piedosas que escolheram, por intransmissíveis, tornaram-se para nós recordações inúteis e armas de arremesso e constrangimento nas línguas desatadas de pregadores tristes em domingos equivocados. São, objectivamente, instrumentos cruéis do nosso remorso sempre crescente.

Eis porque me é tão cara aquela crença sufi de que bem melhor do que o santo é o sábio, servido este por uma santidade superior que partilha com os mais. O sábio que ascende ao saber real e distribui quanto pode aos famintos de espírito e aos dotados de boa vontade do quinhão que lhe cabe do maná celeste, que é a inteligência pura, é uma semente prodigiosa de humanidade e de futuro.

espiritu-santo

O sábio mostra, enquanto o santo esconde. O santo vem e o santo vai e só o nome fica, quando fica; pela passagem do sábio muda o mundo, muda o homem e até a matéria bruta se torna um pouco mais compassiva.

O altruísmo do sábio é o contraponto do egoísmo do santo.

A PROPÓSITO DE CAIM

 
Crónica publicada no Diário do Sul
Vendas Novas, 4 de Novembro de 2009

OS AMORES e os desamores que Saramago concita alimentam-se muito mais da sua assumida militância político-partidária do que da sua qualidade indiscutível e originalidade de escrita, sendo que a generalidade das críticas e diatribes que lhe são dirigidas provêm invariavelmente de bocas e penas de quem o não lê ou o faz apenas com ligeireza.

Saramago

Não posso deixar de recordar aqui que o «originalíssimo ex-ministro Lara lhe censurou o Evangelho Segundo Jesus Cristo, sem o ter lido sequer, e que aquele ilustre desconhecido a quem calhou a sorte de ser deputado europeu, o tal que nega a Saramago a qualidade de português, declarou urbi et orbi que não leu Caim, nem o fará, pela desrazoada razão de ser católico, embora não praticante. Feitios.

Se alguém diz: «sou nadador mas não sei nadar», não será levado a sério, mas português comum adora dizer que é católico sem praticar... e ninguém se ri. Como consegue tal proeza é para mim um enorme mistério.

Bom, indo ao que mais interessa: Saramago, que produz a sua ficção utilizando invariavelmente o método de partir do irreal para o real, do impossível para o lógico realizável, lembrou-se de pegar na Bíblia, catar, no Antigo Testamento, uns episódios dos mais popularizados e submetê-los todos a Caim. Episódios estes tomados completamente à letra, sem direito a qualquer possibilidade metafórica, numa leitura mais restrita que de advogado a decreto-lei, que sempre falará do seu espírito. A partir daí, vá de negar coisas em que ninguém acredita, mas que ele julga que são a essência doutrinal condicionadora das múltiplas crenças que se inspiram na Bíblia. Nada de concessões à lenda, ao mito e ao maravilhoso. Nada de se preocupar com aquilo que podemos chamar de níveis de interpretação de um texto, seja pela perspectiva histórica, seja pela perspectiva filosófica.

Ora, sendo a Bíblia uma obra literária produzida ao longo de milhares de anos pela pena de inúmeros e díspares autores, é evidente que teria de reflectir as suas vivências e entendimentos, naturalmente com os condicionalismos resultantes de cada lugar e momento. Não podemos, ou antes, podemos mas não devíamos, ater-nos à letra que mata, fazer interpretações restringidas ao mais primário literalismo e o pior de tudo: ver o ontem com os olhos de hoje, como faz Saramago, passando à margem de qualquer alegoria, símbolo ou contingência moral segundo o circunstancialismo histórico e geográfico.

Quando se confronta o laureado escritor com estas insuficiências, ele diz que não tem de interpretar, só tem de ler o que lá está em letra de forma. Neste aspecto, não será abusivo dizer-se que, por razões inversas, pede meças aos prosélitos das Testemunhas de Jeová e torna merecedores de crédito os fundamentalistas cristãos, todos tomando a Bíblia como a palavra de Deus, em vez de a ver como a palavra os homens a tentar explicar o que não sabem para dar consistência ao que crêem.

De qualquer forma, lido Caim, não se percebe onde está o escândalo nem o motivo das polémicas desbragadas que por aí se agitam. Digamos que o livro é bastante divertido – mais no sentido sarcástico do que no humorístico –, não distorce o texto bíblico, mas é uma obra menor que fica uns pontos abaixo das tolices do Dan Brown. Tem algumas imprecisões. Os amores de Caim e Lilith não têm suporte bíblico e parecem introduzidos para dar algum sabor erótico à novela. Segundo a tradição judaica, Lilith era um demónio que foi a primeira esposa de Adão, antes que Eva fosse criada.

O capítulo mais interessante do livro – o 13º e último –, parodia o Dilúvio. Por curiosidade se diga que este mito não é original, é uma adaptação de um texto bem mais antigo: A Epopeia de Gilgamesh.

Para terminar, é bom que se diga que todos os remoques que têm sido debitados gratuitamente sobre as tentativas de Saramago provar a inexistência de Deus são completamente descabidos. O homem limita-se, dentro de um direito que ninguém lhe pode negar, a justificar o seu ateísmo e merece que o julguemos suficientemente inteligente. Uma pessoa inteligente não procura provar nem a existência nem a inexistência de Deus. Crenças e descrenças não podem ser levadas à retorta.

SE ME DISSER O QUE É DEUS...

Da minha rubrica Fado Corrido, no Diário do Sul , transcrevo aqui a seguinte crónica:
Vendas Novas, 12 de Novembro de 2009

TENDO ainda como referência as espúrias polémicas reactivas à última obra de Saramago, não me parece todavia que exista uma guerra entre ateus e não ateus, por mais que os seguidores de Richard Dawkins aluguem autocarros para garantirem que Deus não existe ou um qualquer aiatola lance uma fatwah contra os incréus. O que há, como é saudável, é discussão entre lídimas filosofias antitéticas.

Bertrand Russel, um dos fundadores da lógica moderna, , no seu livro Porque não Sou Cristão, explicava porque não se afirmava ateu, mas sim agnóstico. Ser ateu é ter uma fé, uma religião que defende o mistério da não existência de Deus.

E curioso. Fé é algo que se tem ou não se tem, não é do domínio do racional, mas a crença, sua irmã menor, é sem dúvida racional (ou racionalizável), mesmo que inviamente, porque crer é dar crédito ao que nos dizem.

Cada crente, atrevo-me a dizer, imagina Deus à imagem e semelhança do pai que lhe faz falta; discutir depois se Deus existe ou não existe, é algo de redondo, gratuito e mesmo inútil, uma ociosidade desvirtuada pelo enorme paradoxo de racionalizar a fé.

Já experimentaram racionalizar o amor?

Quaisquer «provas» que se usem para afirmar a existência de Deus servem igualmente para negar.

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Quem assistiu na televisão, faz já muito tempo, às celebradas Conversas Vadias, talvez se recorde desta pergunta de Esteves Cardoso a Agostinho da Silva: «Acredita em Deus?»

Ao que o mestre respondeu: «Se me disser o que é Deus, pode ser que eu acredite, ou que não acredite...»