sábado, janeiro 14, 2012

PERSPECTIVAS

 

Imaginemos um pintor, diante da sua tela, em retoques finais, Acaba de pintar o que nenhum outro pintou ou pintará, mesmo que o seu quadro do momento possa não ser muito original.

Se for um grande pintor, aquela combinação única de luzes e sombras dar-nos-á a ilusão de algo vivo, que respira e vibra, aflorando-nos o mais íntimo do sentir.

Milagres destes conseguem-se afinal com pincéis, telas e tintas que se podem comprar com pouco dispêndio na loja do chinês. É, portanto, uma coisa ao alcance de qualquer um, mas convenhamos que não é qualquer que se dispõe sequer a aprender os rudimentos da arte, para vir mais tarde a aceitar o desafio da tela em branco.

Um pintor, mesmo que abstraccionista, é de imagens que se alimenta, é pela imaginação que realiza o que a tela, as tinas e os pincéis permitem e a sua sensibilidade proporciona.

Aceitemos agora que isto não é só válido para a pintura e que, mutatis mutandis, todas as artes vivem disto e é nisto também que a arte da vida assenta. Se a percentagem daqueles a quem podemos chamar artistas plásticos é pequeníssima, mais pequena ainda é a percentagem dos que dominam a arte de viver estética e conscientemente em todos os seus níveis. Para uns e outros há algo de essencial, condição sine qua non do seu mister: liberdade de espírito, liberdade de expressão e livre pensar. Deixe-se o pintor aprisionar pelos cânones estabelecidos e ele perder-se-á na redundância e na esclerose; submeta-se o artista da vida ao peso das gerações mortas, ao que parece bem e ao sempre foi assim e a sua alma estiolará, porque a alma é uma flor mimosa, demasiado frágil para viver obscuramente: murcha quando a aprisionamos. O melhor adubo que lhe podemos dar é pensar livremente, inventando e criando o mundo a cada dia, como se fôssemos afinal um grande pintor perante a tela em branco.

No contexto acima, quando falo em alma não me refiro à alma humana em que nos inserimos como espécie, tida entre os espiritualistas como reflexo da alma divina, nem sequer à totalidade psíquica da construção da individualidade a que os rosacruzes chamam personalidade-alma, falo da base mortal em que esta última assenta: a sensibilidade, a emoção e os sentimentos. É de sensibilidade e emoção que falaremos mais adiante.

É pela sensibilidade e pela emoção, enaltecidas e exacerbadas, que entramos no campo vasto dos sensitivos e dos fenómenos psíquicos. Então, suponhamos agora alguém que tem frequentes visões, sonhos lúcidos, premonições e intuições de grande pertinência e acerto, sensações incomuns, os objectos em que toca despertam-lhe imagens vívidas de díspares acontecimentos, etc., etc. Chamamos-lhe o quê? Psíquico, como dizem os saxónicos? Sensitivo, como se diz em Parapsicologia?

Com estas condições, podemos estar perante um potencial artista da vida, se ele e a vida não decidirem entretanto outra coisa. É que pode a família levá-lo ao psiquiatra e este ache por bem diagnosticar-lhe uma esquizofrenia. De imediato, com drogas, choques eléctricos e outras torturas em que é pródiga a nossa esclerosada sociedade, aprisiona-se tão inconveniente psiquismo até à insensibilidade de um repolho.

Pode também este imaginado psíquico ter medo de quanto em si não é comum e negar o que a vida lhe escolheu. Poderá, no livre exercício da sua vontade, obter resultados idênticos aos das drogas e dos choques eléctricos da psiquiatria medieval que ainda prevalece. Basta que queira. Basta que fuja.

Neste preciso momento, convém que recordemos o que atrás se disse sobre a liberdade do artista, a não submissão aos cânones.

O sensitivo que queira ser um artista da vida não deve submeter-se a quaisquer critérios que lhe queiram impor, sem prejuízo de aprender com os seus iguais e com os consagrados os segredos particulares de cada uma das suas realizações. Não é bom para o sensitivo deixar-se reprimir pelos membros das igrejas estabelecidas, que vêem o diabo a dar ao rabo em cada esquina e em cada pessoa ou coisa que não entendam ou de algum modo contrariem os limites das crenças em que se deixaram aprisionar, mas não se deduza de imediato que é mais avisado ir pelos conselhos dos curiosos, venham eles do esoterismo em geral, do espiritismo, do ocultismo popular ou da fantasia à solta. Dizia George Bernard Shaw: «não me dêem conselhos, deixem-me errar por mim próprio».

Não devemos aprender dos outros, mas sim aprender com os outros, mesmo que os entendamos tão-só por reflexo mecânico do que nós próprios somos.

Por tudo isto, o que quer que seja que eu diga só terá valor pelo despertar que consiga das palavras e sentimentos eventualmente adormecidos na almofada desatenta de quem oiça ou leia, porque o que cada um pensa só é verdadeiramente importante para si próprio, embora cada um pense tanto melhor quanto mais for capaz de entender o mundo e o que pensam os outros do mesmo mundo. Todavia, melhor que pensar é ser pensado, isto é, ser cosmoagido e não perder em momento algum a noção de que neste plano concreto e material da existência de pouco serve o pensar que da experiência de vida se divorcie.

Ninguém vive por interposta pessoa nem afere a validade do que pensa e do que quer para a vida e para o mundo sem agir. Em abstracto, todos os pensamentos, mesmo que nos pareçam detestáveis, estão certos; na acção e na experiência é que se descobre o erro e quanto vale ou para que serve aquilo que se pensou, ou mesmo aquilo que nos pensou. Errar, reconhecer o erro e corrigi-lo é a maior virtude – não existe maior – que um mortal pode praticar. A outorga desta capacidade é aquilo que mais devemos agradecer ao cósmico e à nossa natureza. Isto porquê? Porque nascer cheio de virtudes não é virtude nenhuma, virtude é chegar à morte com um cabaz delas, o que só é possível confrontando-nos com o erro.

Cuidado, pois, com aqueles que acham óptimo que façamos assim ou assado, que dessa forma é que é bom para nós. Como sabem? Em que momento é que viveram por nós?

Como diria o professor Agostinho da Silva, cada ser humano «é uma estrela de incomparável brilho». Cada indivíduo é uma doutrina única, uma filosofia única, uma religião única, todas elas pessoais e intransmissíveis. Sem dúvida que podemos contagiar os outros – e isso é bom – ou tentar aprisioná-los – e isso é mau –, mas tudo o mais é nada, que mestra verdadeira é a vida e outro guru não há que nos valha.

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E veja-se: se a natureza, que é tão avara e inteligente naquilo que tão justamente nos proporciona, quisesse que duas pessoas pensassem da mesma maneira, não dava uma cabeça a cada uma, uma só cabeça chegava para as duas. Aqui, façamos um parêntesis, que eu não creio que a cabeça pense, julgo que seja tão-só uma espécie de antena parabólica ligada a um descodificador de pensamentos.

Abdul Cadre