Faz muitos anos, trabalhei para um judeu alemão que, na sequência da sua fuga ao nazismo, se havia estabelecido em Lisboa,. Uma das suas características mais marcantes era dominar a Língua Portuguesa de forma superior e muito difícil de igualar, o que, se por um lado, levava a quem com ele contactava a admirá-lo, era, por outro lado, motivo de algum despeito. Mais tarde, tive um professor de alemão, austríaco de nascimento, que se casou com uma portuguesa e se apaixonou por Portugal. Por estes exemplos e muitos mais, que seria fastidioso referir, fui-me apercebendo que os estrangeiros que se convertem ao nosso povo são, mais do que o são os naturais, patriotas por inteiro deste lugar e defensores quase religiosos dum passado que assumem e imaginam inteiramente seu, como se uma nova alma os tomasse.
Os portugueses em geral, em contrapartida, têm da sua cidadania uma visão obtusa, da sua História um conhecimento medíocre e, quanto à Pátria, só a sentem até aos limites da aldeia natal. Nos iletrados, sente-se ainda um leve patriotismo emocional, uma certa vontade de vibrar ingenuamente com o que, afinal, menos caracteriza a singularidade do seu lugar; nos letrados, o militantismo pretensioso de todos os modismos vazios – ontem francês ou italiano, hoje predominantemente americano – e uma vontade permanentemente expressa de denegrir tudo o que lhe cheire a português, fá-los pelo menos parecer aquilo que muitas vezes se atrevem mesmo a reivindicar: serem pouco virados para o patriotismo, que é coisa démodé, pois claro.
No entanto, uns e outros detestam – valha-nos isso – que gente estranha os amesquinhe, contrapondo aí inflamações avulsas e mitologias despidas de suporte.
Esta falta duma verdadeira consciência coletiva do ser português, penso que tem a ver com a falta de um autêntico escol, duma elite patriótica capaz de induzir um suporte intelectual aglutinador da emoção dispersa, capaz de fazer compreender que o nacionalismo pode ser – é quase sempre – a negação do próprio patriotismo. É que ser patriota é dizermos: vejam como é bela a nossa terra, apreciem, sentem-se à mesa connosco, comam do nosso pão e bebam do nosso vinho. Ser nacionalista é outra coisa, é dizermos: somos os melhores e não queremos gente estranha ao pé da porta. O nacionalismo baseia-se na exclusão; o patriotismo na assunção da diferença, no amor à diversidade.
Pode dizer-se que o chamado Estado Novo era naciona1ista e que nunca conseguiu fomentar o patriotismo; entre outras razões, por detestar a diferença e ter do escol uma noção provinciana. Assim, aque1es que promoveu como elite intelectual entretiveram-se a reinventar o passado, para dar coerência aos seus espúrios devaneios. Vem deste falso fu1gor a instituição de mitologias que nada acrescentaram ao nosso orgulho, nem tampouco puderam confirmar o pessoano refrão: «O mito é o nada que é tudo.»
Todavia, persistem sequelas. Ainda hoje há muito boa gente que acredita que descende dos lusitanos, sem se interrogar sobre o que terá acontecido às gentes dessas tribos federadas – que nem sequer eram etnicamente homogéneas – depois de os romanos as terem massacrado.
Que sangue nos corre deles, se foram dados por extintos nos finais do século III da nossa era?
Que aconteceu ao sangue de gregos, fenícios, cartagineses, vândalos, suevos, visigodos, etc.?
Que complexos temos nós em relação ao sangue de mouros e judeus? Isto sem falar do muito e indisfarçável sangue negro nos traços fisionómicos de muitos habitantes do Vale do Sado, em especial entre os chamados malteses!
Contudo, a mitologia lusitana podia ter algum suporte se se fizesse uma outra leitura. Quando o neopitagórico renascentista Luís de Camões, quiçá com o intuito de nos deixar o testemunho velado da sua filiação na ordem sufista, cristã e cabalista dos «alumbrados», isto é, iluminados, nos chamou de lusitanos, numa clara alusão a LUZ, e pôs a Lusitânia a ser gerada por um inventado Luso, filho de Baco, quero crer que nunca esperou que levássemos tão à letra – essa letra que mata o espírito – o que era figura de estilo e necessário ocultamento e quiséssemos ostensivamente esquecer quanto de mouro e de marrano nos coube de herança histórica, cultural e genética.
Artigo revisto, originalmente publicado no nº 7 da revista «Humanidades», Lisboa, 2002
ABDUL CADRE