quarta-feira, janeiro 09, 2019

UM OLHAR SOBRE A CONTINGÊNCIA

Limitados Sentidos Temos

"Nossa psicologia pessoal é apenas uma pele física, uma ondulaçãozinha na superfície do oceano da psicologia colectiva. 0 factor poderoso, o factor que nos modifica toda a vida, que modifica a superfície do nosso mundo conhecido, que faz história, é a psicologia colectiva, e o inconsciente colectivo. move-se de acordo com leis inteiramente diferentes das que nos regem a ' consciência".

JUNG in, Psicologia Analítica

No passado dia 8, no programa televisivo CONVERSA AFIADA, de Joaquim Letria, o tema era Espiritismo, ou coisa semelhante. De quanto ali se disse bem se poderia resumir, utilizando as últimas palavras de um dos entrevistados, o Padre Fontes: "penso que as pessoas que tinham dúvidas ficaram com elas, ou com mais ainda. Eu penso o mesmo, mas estou convencido que tal não se deveu a falta de tempo para apresentar o assunto, antes a uma confusão de intenções, de que sobressaiu o confronto peregrino de duas coisas perfeitamente irreconciliáveis, pelo menos na época presente: Ciência e Religião. Queria o Dr. Divaldo Ferreira provar pelo positivismo científico a irrefutabilidade do espiritismo e do outro lado dizia o médico presente, de que não recordo o nome, que nada havia que provasse a existência da vida para além da morte. Para o Padre Fontes, visões são visões, não têm qualquer validade probatória, nem mesmo as de Lúcia, que só para eia eram válidas, já que nem o Francisco as teve, apesar de a acompanhar.

Pois é isto, sem sombra de dúvida, aquilo a que se pode chamar dialogo; monólogos intermináveis onde ninguém se converte e todos regressam da peleja com as mesmíssimas ideias com que para ié foram, frustrados talvez por não terem vencido o adversário, justificando com um sorriso amarelo o exercício das liberdades democráticas suportadas, ou desculpando-se mesmo, que o que é preciso é competir. Nem eles aprenderam, nem nós. Do meu ponto de vista, tal era inevitável, por uma razão muito simples: o espiritista não podia provar de ciência o que só ele subjectivamente experimentava; o padre não podia provar o que a Igreja condena e tão ferozmente perseguiu de Niceia até tempos bem recentes e o médico, que só acredita no que pesa ou no que corta, estava ali precisamente para dizer que tudo o que não é ciência é charlatanice. Ou seja: a paixão, que não se pesa, o amor, que não se corta e a saudade que não se mede, são coisas perfeitamente inexistentes, porque o equivoco fundamental é querermos provar racionalmente o que é do domínio do irracional. Eis a tendência persistente e doentia de nos limitarmos: não damos a César o que é de Cesar, fazemos exclusões. Isto é valido para a discussão em apreço, para outras similares que na pantalha têm passado e é válido para as nossas discussões filosóficas. Nestas, os argumentos e contra-argumentos só nos devem servir no sentido da conversão e como exercício insubstituível para uma desejável e profícua abertura de mente.

De qualquer forma, se me permitem um conselho, não tentem convencer ninguém da verdade da reencarnação. nem nela acrediteis pelos argumentos dos livros. Tomai as opiniões que puderdes, mas procurai sobretudo encontrar a vossa, sem esquecer que de nada vale ser como São Tomé, porque mesmo vendo e apalpando não temos a garantia de que os sentidos nos não enganem. Fizeram-se estudos experimentais em universidades norte-americanas onde se pedia a grupos de estudantes voluntários para caminharem ao longo dum comprido corredor e que parassem sempre que se acendesse uma lâmpada e metade dos estudantes paravam convencidos de terem visto uma luz acender-se. Também se utilizaram máquinas fictícias, isto e, máquinas a que se atribuíam efeitos de calor ou de passagem de corrente eléctrica completamente inexistentes e noventa por cento dos estudantes confirmavam os "efeitos". Há miragens e alucinações. Há o desejo de ver e o desejo de não ver.

Será que o encarnado existe? Quem tem razão, nós ou os daltónicos? Que sabemos nós do funcionamento das nossas portas privilegiadas de acesso ao mundo de relação?

II

Ora vejamos. Se colocarmos um par de auscultadores, sendo que de um lado recebemos uma mensagem in­coerente e do outro uma mensagem devidamente organizada, a nossa atenção só capta aquela que a nossa educação preconce­beu. 0 nosso pequeno eu material é um produto histórico con­dicionado entre o medo e a recompensa. Neste plano, como muito bem disse Pavlov, somos reflexo condicionado: agimos como nos mandam, como mos amestraram e os homens acordados são tão poucos que dificilmente se cruzam dois numa vida. Para despertar, talvez seja bom não nos embriagarmos de certezas obtidas através dos nossos limitados sentidos, antes saber da amplitude de tais limitações através do exer­cício da razão. Mas à razão limita-a o frio da lógica e condiciona-a o mundo das necessidades e utilidades. Depois, a nossa tilinte é dupla e dificilmente se alcança o plano do pensamento puro. Esta dificuldade não advém dos tais nove décimos do cérebro que não se utilizam. Convém, desmistificar essa história: cérebro é cérebro e mente é mente; são órgãos (digamos assim, para facilitar) que pertencem a planos claramente diferenciados do ser. O cérebro tem o desenvolvimento perfeitamente adequado para coordenar as funções que lhe são próprias e servir de emissor/receptor dos pensamentos que nos estão mais à mão. Contrariamente ao que muitos pensam, nunca foi estabelecida irrefutavelmente uma razão directa entre a inteligência e a cor ou o tamanho do cérebro, por mais que alguns homens de ciência argumentem utilizando o que não consideram válido quando na boca de parapsicólogos e quejandos. Mas, para analisarmos o fenómeno da inteligência, nada melhor do que uma história verdadeira que a ciência bem conhece.

Há uma espécie de vespa que alimenta as suas larvas exclusivamente duma dada espécie de tarântula. Põe muito poucos ovos, mas por cada um que está para pôr sai à caça duma dessas enormes e venenosas aranhas. Ora, a tarântula é várias vezes mais corpulenta que a vespa e perfeitamente apta a enfrentá-la com êxito, tendo ainda a seu favor uma consistente e impenetrável carapaça. No entanto, não se sabe porque prodígio, a vespa consegue enterrar o seu ferrão com precisão cirúrgica num ponto frágil onde se articulam as patas e atingir a vítima num ponto vital, causando-lhe atordoamento e paralisia momentâ­nea, não a matando, porque de nada lhe serviria morta. Previamente, a destemida caçadora havia aberto uma cova de cerca de vinte e cinco centímetros de profundidade, onde enfia a tarântula de modo a que fique impossibilitada de se mover passado o atordoamento. Depois, calmamente põe o seu ovo e prende-o ao abdómen da vítima. Mais tarde, quando a larva sai do invólucro, tem um manjar fresco à sua disposi­ção, como frescos estão os líquidos do corpo da sua hospedeira, que vai devorando sabiamente sem lhe causar a morte durante as longas semanas do seu desenvolvimento. Deixa para o fim os órgãos vitais. Quando completa o seu desenvolvimento, sai em voo pronta com o seu ferrão para quando chegar a hora de nova caçada.

Quem ensinou estes prodígios à vespa, que não pode falhar?

Se esta espécie tivesse falhado, não tinha chegado aos nossos dias e teríamos eventualmente o registo fóssil da sua passagem como modelo falhado de vida. Temos tendência para, sem mais lobrigarmos que o mais denso de nós, por aí nos julgarmos o centro de tudo, só porque nos cabe a ilusão de gerirmos autonomamente uma inteligência muito própria, com que remendamos os nossos erros, mas não está garantido que um deles não seja fatal, vindo outra mais apta forme do anjo caído estudar o fóssil que por aí fique como recordação e aviso.

In ALVORADA

Nº 1 – 1992 Equinócio da Primavera