segunda-feira, agosto 10, 2015

TORRE DE CONTROLO

 

Histon, Cambridge, 10 AGO 2015

Gravamos a nossa voz numa cinta magnética e podemos reproduzi-la as vezes que quisermos, mas é evidente que de modo algum nos ocorreria dizer que o reprodutor fala. Aliás, dá-se um fenómeno curioso, que é a dificuldade de identificarmos a voz gravada com a nossa verdadeira voz. De modo um tanto similar, quando ouvimos na rádio alguém a falar, sabemos perfeitamente do que se trata: não é o receptor que tem o dom da fala – ele é apenas um meio –, quem fala é o indivíduo que está no estúdio; a autonomia do aparelho não vai além dos seus circuitos eléctricos.

Também podíamos pensar do cérebro e admitir que a mente cerebral não existe por si, é um meio através do qual se reproduz, nos limites que lhe são próprios, aquilo que chamamos de mental.

É por demais evidente que sem cérebro não comunicaríamos, não raciocinávamos, não recordaríamos, ou, pelo menos, não o faríamos de forma organizada e voluntária, do modo superior que sabemos. Haveria, certamente, reflexos mecânicos originados pelas células, mas nada mais do que isso.

Sem a torre de controlo, os automatismos somáticos seriam muito limitados e a nossa humanidade não tinha como se reflectir no mundo.

A nossa vida seria muito baça.

Abdul Cadre

quarta-feira, agosto 05, 2015

O INSTANTE



Histon, Cambridge, 05 AGO 2015

Mesmo nos meios espiritualistas, onde se esperaria que o conceito fosse menos premente, há quem use e abuse do termo evolução. Eu prefiro falar de progresso, de progredir, sobretudo para me esquivar a equívocas conotações darwinianas, quase sempre inapropriadas fora do seu específico campo. Não sendo esta então a única razão da minha preferência, trago aqui uma outra, esta pessoalíssima.
Nos meus tempos de fumador inveterado – isto foi há mais de trinta anos e não teve nada a ver com evolução –, retirava-me por vezes para um recanto sossegado e punha-me, fazendo boquinhas de peixe de aquário, a expelir argolinhas de fumo, que evoluíam no ar até se desvanecerem completamente. Dizia então para com os meus botões: a evolução é isto, andar em voltas até desaparecer. Qualquer que seja a perspectiva e o contexto, é isto.
Pela mesma tónica, gostando eu de fazer longas caminhadas, não gosto nada de ter de regressar ao ponto de partida pelo mesmo marcador de passos. Sequela dos anéis de fumo, não gosto de andar às voltas, isto é, de evoluir, porque eu não evoluo, apenas procuro progredir no caminho que me escolha. Evoluiria sim – quem sabe? – se a memória me libertasse e eu fosse por aí, às voltas, até desaparecer…
Curioso. E de certo modo paradoxal: tenho um certo gosto em desaparecer, não de mim, que não sou fumo, mas dos olhos que vendo-me de verdade me inventam da forma que lhes dá jeito. Ora, não sendo eu de companhia – que isso são os gatos e os cães –, afasto-me, não vá eu, por distracção, pôr-me a acreditar não invenção que de mim façam amigos e inimigos, tanto faz.
Afasto-me, mas não excluo de modo algum quem me invente, ou nem isso. Esses estarão mais presentes do que se perto estivessem. E mais autênticos, porque não os invento nem os imagino, pois fazem parte da minha circunstância. Eis a razão pela qual a minha adorada solidão é tão povoada. Nela tudo incluo, não por recurso à memória e à nostalgia, mas por ficar, como quem faz boquinhas de peixe de aquário, a expelir anéis de fumo que evoluem. Eu que já não fumo. Eu que não evoluo.

Quando chego junto ao lago dos patos e dos peixes e lhes atiro pedacinhos de pão, nem eles nem eu evoluímos, apenas nos integramos na plenitude do momento, do instante onde a eternidade nos toca e a morte nada pode. 
ABDUL CADRE

segunda-feira, agosto 03, 2015

MEDITAÇÃO

Histon, Cambridge, 02 AGO 2015

Com propriedade ou sem ela, há muita prática mental a que, não o sendo verdadeiramente, ou não o sendo no sentido do êxtase, da contemplação, é uso chamar de meditação,.
Muitas dessas práticas não ultrapassam o nível de exercícios de pacificação e condicionamento mental, caracterizando-se comummente pelo uso da auto-hipnose, do pensamento criativo, da reprogramação neuro-psíquica e toda a sorte de induções imagéticas.
Ora, todas estas práticas, independentemente do método ou sistema seguido têm um handy cap incontornável: carecem da liberdade essencial que constitui a não sujeição a modelos. Estabelecer ou aderir a condições prévias impede o verdadeiro estado meditativo, ou êxtase.
Contorcionismo, posições exóticas, mantras, música celestial podem induzir um relaxamento profundo, mas não nos livram da tagarelice da corrente do pensamento nem do desejo de alcançar algo, de ter um objectivo, quando o verdadeiro estado meditativo se caracteriza pela morte do eu que o pensamento inventou com a cumplicidade do tempo. Querer calar o pensamento é todavia pensar e esta mesma intenção é de qualquer forma um desejo, o assumir de um objectivo.
A meditação exige um estado contemplativo (um estado inclusivo de observador, observado e circunstância) proporcionado pelo silêncio e pela atenção; uma ausência de conflito, o qual é inevitável quando o pensamento joga a sua dialéctica do prazer e do remorso.
De meditação, sobram os gurus que a moda acomoda e sobram os processos ilusórios de fuga e rendição.
Faz alguns anos, naqueles encontros havidos na casa do Professor Agostinho da Silva, apareceu por lá um desses gurus em sobra, tido como destacado dirigente de um certo grupo esotérico (?) que resolveu, vejam bem, ensinar o Professor a meditar. «Ó Professor, faça assim, ponha as mãos assado». Até que o visado, incomodado com tanta presunção e estontearia, exclamou: «Ó homem, deixe-me! O que é que pensa que eu faço todo o dia?»
É isso. A meditação só pode ser o que fazemos todo o dia, tem de estar em todos os nossos actos, num modo de atenção e percepção que nos conduza ao autoconhecimento, porém, o autoconhecimento não é o que mais comumente se pensa que seja.
Ilude-se aquele que afirma conhecer-se – eu conheço-me muito bem – porque só se conhece quem não julga nem se julga, quem não projecta no eu os seus desejos e crenças, a sua sombra, na linguagem junguiana. No autoconhecimento não se fazem conjecturas nem juízos morais sobre o que somos ou não somos, apenas se percebe o que somos com todas as nossas características indivisíveis em conceitos de vícios e virtudes.

Não há meditação sem autoconhecimento nem este sem aquela. Sem autoconhecimento, o que quer que se entenda ou faça como meditação é do domínio do ilusório, da sujeição aos caprichos, aos modelos, às crenças, às superstições, tudo coisas que nos limitam, quando a verdadeira meditação, que podemos chamar de êxtase, ou de contemplação implica liberdade plena. Tal liberdade exige romper com o fluxo do pensamento e quebrar as cadeias do próprio conhecimento, todo ele feito de memórias encadeadas e raciocínios tramados pelo tempo passado. Todo o conhecimento produzido pelo intelecto é uma arqueologia, um reviver do passado, uma coisa morta – todo o passado é morte – uma negação da eternidade. Damos de barato que é a nossa circunstância, mas contrapomos que não é a nossa natureza mais íntima, a qual só perscrutamos quando o tempo se dissolve, o pensamento se detém e a mente se aquieta.
Abdul Cadre

quarta-feira, janeiro 07, 2015

A CONSCIÊNCIA

Vendas Novas, 06 JAN 2015

  • A ciência, aquela abstracção a que chamamos ciência real ou concreta, é sempre como aquelas casas para cuja ampliação se aproveita cantaria de outras.

Agostinho da Silva

Há conceitos que se usam com o maior dos à-vontades como se fosse pacífica a sua invocação e unívoco o seu entendimento. Tal é o caso, entre muitos outros, de «consciência». Afinal, quando dela falamos, de que falamos verdadeiramente?

Elaborados ou não, vários são os entendimentos. Por exemplo, confunde-se bastas vezes carácter com consciência quando, se atentarmos bem, o primeiro refere-se à disposição habitual e à reposta comportamental típica consequente ao temperamento e à sensibilidade, enquanto a última é aceite geralmente como significando a percepção do dever, o sentido do bem e do mal.

Mas temos mais.

Perante um acto impensado e perigoso, diz um amigo ao outro: és um inconsciente; daquele que trabalha com muito esmero e responsabilidade, diz-se que é um trabalhador muito consciente; da vítima gravemente ferida num acidente de automóvel poderá dizer-se: está ainda encarcerado, mas perfeitamente consciente...

Em português, consciente tanto pode querer dizer «que sabe que existe» (autoconsciência), como «que sabe o que faz», que é cônscio, sabedor, ciente. É o «concienzudo» castelhano, que se pode traduzir por cuidadoso. E vale a pena lembrar que na língua castelhana, que muitos chamam língua espanhola, temos o termo «conciencia», que é a consciência conotada com a moral e o termo «consciência», que significa conhecimento. O interessante, como curiosidade divertida, é que muitos portugueses, conhecendo ou não o castelhano, em vez de pronunciarem consciência, pronunciam erradamente conciência, que é um termo que a língua portuguesa não regista nem está previsto nas tropelias da aberração conhecida como «acordo ortográfico».

É evidente que a polissemia do termo pode confundir a conversa e obnubilar o entendimento, e do que queremos falar é de consciência em sentido mais restrito do que o corrente mas de modo algum tão restrito que fique subsumido ao sistema individual de valores morais, ao certo e ao errado da conduta, sem prejuízo, no entanto, de querermos privilegiar a vertente metafísica do assunto, mas sem descurar os importantes e significativos aportes dos grandes investigadores da ciência académica da Psicologia.

Queremos também que não se confunda mente com consciência e se aceite que cada ser humano, sendo uma unidade de consciência, transporta em si, em cada célula, em cada órgão, unidades escalonadas dessa mesma consciência.

Para a ciência moderna, mente e consciência são produtos da actividade cerebral. Platão e Descartes não entendiam assim, defendiam mente e cérebro como entidades separadas. Se nos perguntamos se são os acontecimentos baseados no cérebro que causam a experiência consciente ou se é a experiência consciente que causa mudanças no cérebro, não raro somos empurrados para a velha história do ovo e da galinha. Entendemos perfeitamente que a ciência se preocupe apenas com o que ode pesar e medir e que reduza a consciência à electroquímica, às ondas e às localizações cerebrais. No nosso entendimento, que não é científico, tudo isso nos parece pouco, porque é apenas a parte visível (digamos assim) de um imenso iceberg; é a redução da consciência aos fenómenos do comportamento, da atenção e da percepção. Todavia, por mais que seja um handy cap não sermos cientista, e sem carregar excessivamente na perspectiva metafísica, diríamos que a consciência individual – o eu – é um processo potenciado pela consciência humana global, sendo esta infundida pela consciência cósmica que emerge da mente total e absoluta, que muitos designam por Deus. Como energia subtil, é universal; como função, é critério nos humanos e instinto de sobrevivência nos animais e no que em nós há de animal.

Eis então que a nossa assim delimitada consciência constitui um processo mental, certamente com implicações fisiológicas, mas não apenas, não meramente um processo fisiológico. Do nosso ponto de vista, não é um produto do cérebro, sendo que este é, sobretudo, um interface entre o soma e a psique. Veja-se, por exemplo, que as amibas não têm cérebro e todavia têm consciência, não ao nosso jeito, como é evidente, mas ao jeito delas.

É nossa convicção que não foi o cérebro que inventou o pensamento, mas que foi o pensamento puro – que é uma potência cósmica – que infundiu e desenvolveu essa estrutura em nós. A nossa mente é o reflexo em nós da mente cósmica, o que implica entendermos que tudo é mente, que o universo é mental. É por isso que a nossa mente (individualmente considerada) não é tão independente quanto comummente se julga, pois está mergulhada no mar imenso da mente humana colectiva de hoje e de ontem e nem sequer está apartada da sua infusão nos reinos vegetal e animal, dado sermos um com todos os seres.

Do ponto de vista esotérico, a mente é parte da alma e da personalidade, ressalvando-se desde já que a utilização destes termos e destes conceitos é tudo menos pacífica.

Também não será pacífico dizer-se que a razão, a intuição, a emoção, a imaginação, a criatividade e a erudição, por exemplo, são produtos básicos da mente. Assim sendo, então a consciência humana identifica-se claramente com este compósito, susceptível de conduzir quer à sabedoria, quer à santidade, ou ao contrário de uma e outra coisa, por inversão de polaridades.

Conclua-se então que os nossos órgãos físicos são estruturas desenvolvidas pelas necessidades funcionais, porque é a função que determina o órgão, não é o órgão que inventa a função.

Não foi a caneta que inventou o escritor, pois não?

Para interpretar o mundo terrestre e nele agir adequadamente, desenvolvemos os sentidos físicos que tal possibilitaram: cinco virados para o exterior e vários outros (virados para dentro), tendentes à protecção e conservação do corpo. Estes sentidos são assim faculdades objectivas ao serviço das nossas faculdades subjectivas, mormente da capacidade reflexiva.

Dando tudo isto como bom, facilmente entenderemos que a vida é a grande função de que o nosso soma é a estrutura global da nossa acção mundana, o nosso grande veículo neste plano de manifestação. Nesta estrutura, os sentidos (os órgãos dos sentidos) permitem-nos – permitem a todos os seres vivos – reagir no seio da nossa circunstância. Pela razão, – e a razão, como atrás dissemos, é um produto da mente – a nossa reacção torna-se racional e inteligente; a consciência, através dos sentidos, faz de nós seres sensíveis.

Todas as células do nosso corpo estão impregnadas de consciência, toda a nossa bioenergia a reflecte, porque, sendo um produto da alma, age sobre todo o ser e sobre todos os seres.

Então, está errada a ciência?

É evidente que não. Ela apenas se ocupa do que deseja ocupar-se e a metafísica não lhe diz respeito. Da consciência estuda a parte objectivamente constatável, os fenómenos que resultam da percepção, da memória, da razão, da inteligência funcional, do básico, digamos assim, daquilo a que os metafísicos chamam actividades da consciência objectiva, sejam elas automáticas ou voluntárias. O mais longe que a ciência académica se atreveu, aliás com bastante relutância, prende-se com as propostas despoletadas por Freud e por Jung, nomeadamente com a introdução do conceito de inconsciente, que é algo que afinal não se mede e nunca foi localizado, seja no cérebro, seja em qualquer outro lugar físico, o que constitui, naturalmente, uma grande contrariedade.

Como diria Schiller, a percepção sensorial e a autoconsciência manifestam-se independentemente da nossa própria vontade e do nosso conhecimento. E ainda bem, acrescentaríamos nós, para nossa segurança e comodidade. Todavia, sem a vontade, que é a consciência em acto, e sem o conhecimento, que é sobretudo evocar e relacionar campo da memória, não nos distinguiríamos dos animais tanto quanto nos distinguimos, ou nos julgamos distinguir.

Os automatismos inscritos na nossa consciência objectiva, actuando através do nosso sistema nervoso, dos nossos sentidos e coordenados pelo nosso cérebro, automatismos a que poderíamos chamar pré-consciência, ou consciência elementar, podem e devem ser condicionados pela vontade e pelo propósito, pois que o descontrolo desta consciência elementar constitui uma alienação e, sob o ponto de vista dos costumes, leva à corrosão dos critérios do bem, do belo e do justo; sob o ponto de vista da sanidade física e mental, conduz à neurose e mesmo à loucura.

Para finalizar, por mais redundantes que possamos ser nesta exposição, julgamos que o que importa reter é que a consciência humana – colectiva ou individual – é um reflexo (uma infusão) da consciência cósmica global, não reside no cérebro, contrariamente ao entendimento maioritário dos cientistas. Ela é um atributo da Alma, agindo nas dimensões corpóreas e incorpóreas do ser humano, utilizando o corpo físico por inteiro e não apenas o cérebro, embora este tenha privilégios de comando e coordenação.

O cérebro é, com certeza, uma grande obra da nossa evolução; enorme, porém, é a função que o determinou e requer.

ABDUL CADRE