terça-feira, março 28, 2017

A ALMA

Publicado primitivamente em VERSÍCULOS DO HOMEM

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«A fé não será mais do que uma superstição e uma loucura se não tiver por base a razão, pois não se pode supor o que se ignora sem ser por analogia com o que se sabe. Definir o que não se sabe é uma ignorância presunçosa; afirmar positivamente o que se ignora é mentir. » (Dogma e ritual da alta magia). Eliphas Lévi.

 

 

14/03/2015

Se observarmos neste nosso ocidente, seja dentro das fronteiras de um dado país, seja no concerto internacional, os meios espiritualistas como um todo, excluindo da observação as grandes religiões institucionalizadas, o que mais salta à vista, para além da enorme profusão de grupos místicos, esotéricos, ocultistas e afins é a multiplicidade das terminologias difíceis de conciliar e o excesso dos conceitos, por vezes pouco rigorosos, muitas vezes nada adiantando para o entendimento, mas pecando quase sempre no acrescento das confusões e das controvérsias. Pior ainda, no próprio seio de cada grupo específico, salvas as devidas proporções, como é evidente, o problema é similar.

As nomenclaturas excessivas são invariavelmente um prejuízo para a clareza das afirmações e dos entendimentos; tentar alcançar nomenclaturas convergentes e integrantes, sendo sem dúvida um esforço louvável, raramente é compensador.

De qualquer modo, cremos que o que mais agrava este problema é sobrarem os pretensos mestres e os portadores de certezas e escassearem, na mesma proporção, os verdadeiros buscadores com a humildade suficiente para perceberem que a “verdade” de cada um é apenas uma versão entre as inumeráveis versões possíveis. Diríamos assim que o verdadeiro buscador se caracteriza por esta humildade e por uma dedicação inexcedível à procura do propósito da vida. Por isso costumamos dizer que ele vive de propósito e se alimenta da incerteza, porque sem esta não há questionamento; todos aqueles pontos que outros julgam de chegada, para ele são invariavelmente de partida.

Para quem busca, perguntar é mais importante do que responder; responder é bastas vezes subsumir fenómenos plurais às causas únicas em que previamente se crê, justificando assim a crença. Ora, por mais que as crenças possam gerar lídimas expectativas, o que parece ser claro e insofismável é que tendem a criar e a enaltecer ilusões, a distorcer toda a experiência.

A crença alimenta o reducionismo e este é uma arma ideológica ao serviço das submissões organizadas, sejam elas políticas, religiosas ou simplesmente de poder. O reducionismo é o garrote mais tenaz nos fenómenos de empobrecimento intelectual. Mas adiante.

Para os idealistas desprevenidos que pretendem introduzir-se neste universo, por vezes delirante, dos saberes incomuns, onde a discussão sobre o sexo dos anjos se sobrepõe ao que é essencial, pode bem ser que quanto acabamos de dizer não seja coisa que mereça muita atenção nem constitua aviso sério ou sinal de perigo. De certo modo, pode até ser excitante, porque o pior talvez não seja isto, mas sim toda uma fancaria literária – especialmente a contaminada pelas perniciosas fantasias new age – que produz um sério envenenamento mental dos que não prestam atenção a que o papel aceita tudo o que lá se escreva. Nos carentes de espírito crítico, isto chega a produzir dependências similares às das drogas químicas.

Os que chegam aqui, desiludidos as mais das vezes com as velhas igrejas, mais não fazem que substituir uma ilusão gasta por ilusões que o hão de desgastar.

Não cabendo na presente exposição falar alongadamente da imensa confusão dos conceitos, provocada pela multiplicidade quase sempre desnecessária das designações e pela superficialidade das assimilações, nem muito menos – por falta de espaço – clarificar tudo isto que acabámos de referir à vol d'oiseau, queremos desde já prometer que nos esforçaremos por não aumentar a confusão criticada.

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Nesta oportunidade, é de alma que queremos falar, que é um conceito que todos pretendem entender, mas o facto é que o fazem de uma forma tão particular que não conseguem encontrar quem lhes diga: é isso mesmo. São tantas as imagens conceptuais que se inventam para a alma que, defini-la com precisão se torna uma tarefa impossível. Aliás, definir o que quer que seja é traçar limites, e bem dizia Heraclito que não encontraríamos tais limites, por mais caminhos que percorrêssemos, dada a sua profundidade.

Sendo assim, não esperamos, como é óbvio, a concordância do leitor, apenas lhe pedimos que reflicta sobre as muitas concepções a propósito, entre as quais a nossa. Verá, pensamos nós, que o entendimento não é unívoco e creia que a sua (ou a nossa) crença do momento não é defensável como sendo a crença definitiva para todos os momentos.

A plasticidade das ideias deriva do fluir do tempo. Os gregos pré-socráticos acreditavam na existência de duas almas: a alma alento (thymós), mortal, que usava privilegiadamente os pulmões e o coração e a alma intelecto (digamos assim), que actuava na cabeça e sobrevivia à morte do corpo físico: a psyché. Platão falava-nos, e Aristóteles também, de três almas. A nomenclatura das mesmas, para o primeiro era a seguinte: alma do desejo (produtora da concupiscência), alma do valor (donde nos vinham os impulsos elevados e a vontade) e a alma do entendimento (que nos conduziria à verdade e à compreensão). Na terminologia aristotélica, as três almas eram a alma vegetativa, a alma animal e a alma racional. Já Pitágoras não compartimentava a alma, que considerava de origem divina, diminuída, porém, pelo pecado original. A sua purificação far-se-ia pelo saber e pelas reencarnações.

Os chineses, na sua religiosidade popular, conseguem distinguir dez almas, organizadas em dois aspectos: o aspecto PO (mortal), contendo as sete emoções (cólera, desejo, medo, tristeza, júbilo, amor e ódio) e o aspecto HUN (imortal), composto pelo intelecto, a sensibilidade e a memória.

Quando a Psicologia era apenas uma introspecção – a chamada psicologia na primeira pessoa – tudo parecia claro a crentes e descrentes, aos que acreditavam na existência da alma e aos que negavam. Ligada ou não à herança grega, a teologia apontava para que a alma fosse uma entidade imaterial, que permaneceria para além da morte no céu, no inferno ou por aí. De qualquer forma o peso do significado do termo psicologia não podia ser aliviado. A Psicologia – ciência (ou estudo) da alma – era então uma disciplina integrada na Filosofia.

Com o advento da psicologia na segunda pessoa, o que mais mudou nas crenças e entendimentos foi a susceptibilidade de invadir intimidades, coisa muito apetecida por sacerdotes e conselheiros espirituais e que abriu a porta a terapias da alma e a cátedras inovadoras. Em consequência, para um grande número de pesquisadores, entendia-se a alma como um conjunto de qualidades emocionais, tidas como opostas às qualidades racionais e intelectuais.

Daqui até à psicologia na terceira pessoa foi um pulinho e o interesse pela alma em sentido espiritual desvaneceu-se; a «ciência da alma» afinal já não estudava a alma, mas sim o comportamento – até dos bichos – e, neste aspecto, não se lhe via qualquer vantagem ou distinção de relevo em relação à sociologia. Claro que, do ponto de vista académico, não se pode simplificar tanto, as coisas são um pouco mais complexas, pois várias são as escolas de psicologia e algumas tendem mesmo a repor certos valores próprios da metafísica. Tenhamos presentes os aportes da psicologia analítica de Jung, por exemplo. Mas deixemos isto.

O esoterista Louis Lucas, autor do livro Roman Alchimique, dizia que a alma é uma criação da nossa própria pertença, afirmação concordante com o seu contemporâneo Papus, para quem a vida é dada ao homem para que ele a transforme numa força mais alta: a alma. Para Papus, a alma não seria congénita ao ser humano, seria uma resultante: o produto da vontade bem dirigida e o efeito cuja causa está em nós.

A estes dizeres costumamos nós acrescentar que a alma humana é uma conquista, mas que a alma que nos ilumina é uma outorga, pelo que realizarmo-nos espiritualmente é fazer coincidir a conquista com a outorga.

É evidente que estas três concepções arrepiam completamente as crenças comuns de católicos e protestantes, para quem as almas são geradas por Deus uma a uma e de propósito para animar cada um que nasça…

De qualquer forma, nada disto nos diz de forma inequívoca o que é a alma e não ficamos mais esclarecidos se nos debruçarmos sobre os muito tratados produzidos a oriente e a ocidente sobre o assunto, até porque, muito do que se designa por alma se refere a realidades diversificadas. Por exemplo, Rodolfo Steiner chama alma ao que outros autores chamam corpo astral. E este será também o sentido que se pode retirar do que atrás referimos de Papus e Lucas.

Muitas das concepções sobre a alma, se as escalpelizarmos, negam o princípio de que partem, da sua “imaterialidade”, da sua invisibilidade. Isto dá aso a aparecerem nos meios de comunicação faits divers do género: descobriu-se quanto pesa a alma…

Neste sentido, no oriente não se pesam as almas, talvez porque se distingam muito acuradamente a alma humana (o verdadeiro eu – Atman), da alma universal ou Brahma.

Ao escrevermos atrás “imaterialidade”, entre comas, tínhamos em mente algo que não vamos desenvolver aqui. É que pode ter-se o entendimento de que tudo seja matéria em níveis diferentes de manifestação (ou de consciência). Neste caso – evidentemente – teríamos de assentar no que é que se entende por matéria. Veja-se que, para os pitagóricos, o homem representava uma unidade de contrários, uma harmonia entre o corpo finito e a alma infinita. Aliás, para eles, finito e infinito sustentavam-se mutuamente

Ultrapassando este quid pro quo e tendo em vista desembaraçarmo-nos de confusões improfícuas, caberá dizer-se que o nosso pensamento, contrariando muito do que é corrente no meio esotérico, vai no sentido de dizermos que existem dois – e apenas dois – planos de existência: o finito (mundano e objectivo), acessível às ciências académicas, e o infinito (espiritual ou metafísico), dito por vezes invisível. O que se queira conceber entre um e outro plano não poderá constituir um terceiro plano, mas uma twilight zone, uma zona onde o astral e o subatómico se misturam. Onde dissemos astral, poderíamos ter dito psíquico. Neste entendimento, falarmos de corpos, no invisível, só pode passar como retórica, estilo ou necessidade didática.

Os planos de existência catalogados pelos ocultistas não são lugares, mas tão-somente modos de ser e de estar. As concepções trinas, quaternárias, quinárias, septenárias (e outras) são tentativas de entender e explicar a existência fazendo uso de esquemas mentais simplificadores que, ao fim e ao cabo, mais confundem do que simplificam. Quando queremos falar da realidade mais profunda, podem sobrar as palavras – e elas são invariavelmente excessivas – mas o que elas signifiquem será sempre insuficiente e impreciso. Por outro lado, conceber-se um modelo para representar essa realidade, tem sempre o ónus de distorcê-la.

Quando se diz que o corpo humano se divide em cabeça, tronco e membros, estamos no campo da didática, queremos distinguir funções específicas, não estamos no campo da demonstração de três realidades diferentes. Separada que seja a cabeça do resto do corpo não será de corpo que se fala, mas de cadáver mutilado. Por maioria de razão, nada é separável no “invisível”, naquilo que é inconsútil por natureza. No invisível, isto é, no infinito o espaço não é concebível, a tridimensionalidade é um absurdo e o tempo perde o sentido. A seu respeito, o mais que podemos imaginar – por razão e por intuição – são escalas vibratórias. Mas cuidado com a imaginação, porque esta palavra não deriva apenas de imagem, também leva no ventre a palavra magia. E não há magia que nos faça ver nem imagem que se veja que nos desoculte o mistério, para além das crenças comuns de religiosos e esoteristas, de como é que o imaterial pôde manifestar o material, malgrado bem sabermos que o ponto (sem dimensão) deu origem a todas as dimensões, a toda a geometria conhecida, como diria Agostinho da Silva. Os cientistas, que detestam – e fazem bem – todo o mistério (no sentido de inexplicável), retorcem-se e não conseguem explicar como as partículas subatómicas se convertem em matéria, daí tanto se excitarem com o bosão de Higgs, popularizado como partícula de Deus, susceptível de aliviar tanto stress.

Pois bem. Chegados aqui, pedíamos ao leitor o seguinte esforço: tente aceitar, como puro exercício reflexivo, a concepção que mais abaixo tentaremos desenvolver, a qual não é apenas nossa, embora leve, obviamente, a nossa marca. É uma concepção muito grata aos rosacruzes dos altos graus que o leitor, se acaso tem facilidade de investigar psiquicamente, poderá comprovar por si. Se este for o caso, virá a concordar que as teorias dos cinco corpos, dos sete corpos e explicações semelhantes fazem parte de um modo de produção em que livros reproduzem livros, aos contos se acrescentam pontos, às crenças mais crenças e, da experiência, do estudo, da meditação pouco vem. Ou nada vem.

O exercício reflexivo é o seguinte: Vamos admitir que o Absoluto – a que podemos chamar Deus – contém em si tudo o que existe e tudo o que não existe e, sendo assim, toda a inteligência ali reside. Ao exercício dessa inteligência podemos chamar Consciência Cósmica, cuja manifestação e expansão se faz mediante um fluxo energético com duas polaridades: à polaridade negativa, de características pró-materiais, poderíamos chamar maré de vida; à polaridade positiva, de características imateriais, chamam os rosacruzes alma universal. Para os mesmos rosacruzes, este fluir, que designámos atrás por maré de vida conteria em si duas energias: a energia espírito e a força vital. Mas aqui surge uma pequena divergência da nossa parte às propostas tradicionais de base dos rosacruzes, que nem divergência será, mas apenas nuança, perspectiva e simplificação; nós, que somos estudantes apenas, identificamos a maré de vida com a própria energia espírito e estamos em crer que a força vital – o prana da tradição hindustânica ou Chi, segundo os taoistas – resulta da interacção com a alma universal. Não seria possível sem esta.

Nesta concepção, cabe referir algo que achamos muito interessante, que dizia Blavatsky: a matéria é espírito cristalizado e o espírito é matéria subtilizada. Isto levar-nos-ia à tal concepção de dizermos que tudo é matéria (ou que tudo é espírito).

Dado que nos temos referido a espírito e a espiritualidade – toda a pobreza resulta da imprecisão e insuficiência das palavras –, tenhamos cuidado, porque quando falamos de espiritualidade e dos valores e natureza espiritual do homem, não nos referimos propriamente à energia espírito, mas sim aos influxos superiores da Consciência Cósmica no homem. Acontece, porém, que falarmos destes influxos implica termos em mente que eles se exercem sobre alguma coisa, tal como em electricidade não podemos conceber o polo positivo sem o negativo, caso contrário não haveria corrente. Eis, nisto tudo, a dualidade nos seu esplendor,

É bem-sabido que para muitos entendimentos, verbo gratia religiosos, espírito e alma são a mesma coisa; para outros, nomeadamente para os rosacruzes, trata-se de duas essências igualmente divinas, mas de frequências vibratórias distintas: mais elevadas as da alma, mais baixas as de espírito, que por serem, digamos, mais densas manifestam-se primariamente nas formações subatómicas.

A alma, pela sua subtileza e altíssima vibração é indivisível e inseparável da sua fonte. Ela infunde no homem as características psíquicas e só psiquicamente se pode manifestar, nomeadamente como veículo de consciência. Esta é a razão dos campos intermédios, que referíamos atrás com a expressão pouco rigorosa de twilight zone. O corpo psíquico (nomenclatura rosacruz), o envoltório fluídico (nomenclatura martinista) o corpo astral (nomenclatura mais comum na literatura esotérica) é a ponte entre a alma e o corpo físico.

E não se veja contradição à nossa crítica atrás, de acharmos inapropriado falar de corpos no invisível, porque as vibrações mais baixas do astral, em certas condições, podem estimular os nossos sentidos objectivos, nomeadamente a visão. Se tivermos acesso a um bom microscópio não vamos dizer que os micróbios são invisíveis.

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Para terminar, diga-se então que o corpo psíquico (ou astral) não é a alma; aquele é mortal e esta é imortal, porque inseparável da fonte. Esta é a razão de costumarmos dizer em tom de brincadeira, mas que todavia é uma afirmação séria, que nós não temos alma, é a alma que nos tem. Temos, obviamente, o seu influxo, que produz na nossa personalidade um desejo de eternidade e um desejo de altura, que a leva a querer reflectir, a querer parecer-se com a alma. Daqui o conceito personalidade-alma (personalidade da alma ou alma personalidade), que pode justificar a afirmação de Louis Lucas de que a alma é uma criação da nossa própria pertença. Criação progressiva, diríamos nós, porque esta alma humana ascende e progride em sucessivas reencarnações.