quinta-feira, dezembro 19, 2019

POEMA À DURAÇÃO

Peter Handke foi galardoado com o Prémio Nobel da Literatura de 2019. A Assírio & Alvim acaba de publicar o seu longo e extraordinário poema com o título Poema à Duração. É uma edição bilingue – alemão e português – e a tradução é de José A. Palma Caetano.

Quando gostamos de um poema, como eu gostei deste, apetece-nos dizer só para nós, muito em segredo, sem que ninguém nos oiça: que pena, eu não o ter escrito.

Por não o ter escrito, peguei em alguns dos versos que mais me tocaram e fiz o alinhamento que abaixo coloco. Quem for ler o livro vai encontrar lá estes versos, tal como os transcrevo, não como os alinho. Não vejam isto como um resumo das várias dezenas de versos do poema, mas como uma recordação. Talvez revisitar o que Bergson disse do seu entendimento da duração ajude na leitura do poema.

«A duração é o sentimento da vida.

O êxtase é sempre de mais,

a duração, pelo contrário, é que está certa.

Eu eduquei-me

na espera da duração,

sem o dispêndio da romagem.

Duração, meu sossego.

Duração, lugar do meu descanso.

Impulso temporal da duração, tu rodeias-me

de um espaço descritível

e a descrição cria o espaço que se lhe segue.

O impulso da duração é

o que me tem faltado.

Quem nunca sentiu a duração

não viveu.

A duração não existe na pedra

antiquíssima e eterna,

mas sim no transitório, no que é brando e sensível.

Em lugar de todo o falatório que há em mim,

do suplício que infligem muitas vozes,

surge a meditação,

uma espécie de silêncio redentor,

mas do qual se desprende, ao chegar ao local,

um pensamento explícito, o meu pensamento mais elevado:

Salvar, salvar, salvar!

Num impulso tão doce como poderoso

arredondam-se os olhos,

há um ranger nos canais auditivos

e eu celebro na clareira

a festa de agradecimento da presença no lugar.»

sexta-feira, outubro 11, 2019

QUAL A ORDENAÇÃO DOS MMM?

Os Manuscritos do Mar Morto não se procuram nem por tema nem por data do achamento, mas pelos locais onde foram achados e respectivas grutas.

São quase um milhar entre papiros, pergaminhos e até folhas de cobre, envolvendo línguas como o aramaico, o hebreu, o grego, o latim, e até o árabe.

O Menos importante e referido é o:

– MANUSCRITOS DE MISHMAR

São apenas dois papiros, descobertos em 1961

Tendo a ver essencialmente com os essénios e com o Antigo Testamento:

– MANUSCRITOS DE KUMRAN

Descobertos ocasionalmente em 1947, os primeiros por beduínos e os posteriores por arqueólogos, exigiram pesquisar 11 grutas nos arredores de Kirbert Qumran, no Deserto da Judeia. De um modo geral, são documentos anteriores ao século IV aC.

– MANUSCRITOS DE MASSADA

Escavações em 1963/64 por Yigael Yadin. Os documentos são anteriores ao ano 70 da nossa era, isto é, anteriores ao massacre da comunidade de Massada pelas tropas romanas.

Tendo a ver sobretudo, com a revolta de Bar Kokheba, séc. II dC:

– MANUSCRITOS DE WADI SEIYAL

Constituídos por dois grupos descobertos em 1952/54, um grupo pertence ao Rockefeller Museum e o outro ao Santuário do Livro

– MANUSCRITOS DE MURABA’AT

Escavações de 1960/61

– MANUSCRITOS DE NAHAL HEVER

Escavações de 1960/61, respeitam a duas grutas: a GRUTA DAS CARTAS e a GRUTA DOS HORRORES.

– PAPIROS DE WADI DALIYEH

(OU PAPIROS DE SAMARIA)

São todos anteriores ao século IV aC. Foram descobertos numa gruta a 15 km de Jericó.

Tendo a ver com o cristianismo, mas nada de relavante contendo, para além de ajudar a caracterizar a época:

– MANUSCRITOS DE KIBERT MIRT

Descobertos em 1953. Tem vários fragmentos neotestamentários. São provenientes das ruinas do antigo mosteiro de Castellion. Uns foram adquiridos a beduínos e outros encontrados por uma expedição belga.

PARA QUEM ANDA À CATA DE MISTÉRIOS

Nos documentos descobertos em Qumran, há um célebre ROLO DE COBRE que deu um trabalho imenso para lhe desvendar os dizeres, mas que, todavia, não se sabe o que verdadeiramente significa.

O rolo estava oxidado e desdobrá-los seria perdê-lo, porque se desfazeria. Alguém, então, se lembrou, ao que parece fi John Alegro, que a solução seria cortá-lo longitudinalmente em pequenas tiras que seriam depois montadas como se se tratasse de um puzzle. Resultou. Claro que ficaram em falta pedaços de texto, como é costume quando se manuseiam textos com que o tempo não se apiedou. A língua usada pelo autor ou autores era o hebreu bárbaro e alguns caracteres mostraram-se impossíveis de decifrar, mas conseguiu-se tornar legível aquele texto, que nos deixou uma dúvida grande: trata-se apenas de folclore acerca de tesouros imaginários, ou na realidade é um verdadeiro mapa do tesouro?

Ora, leiam um bocadinho:

«… Na ruína que há no vale, passa sob as escadas que vão para o Leste, quarenta côvados: [há] um cofre de dinheiro, e o seu total o peso de dezassete talentos. […] No monumento funerário, na terceira fileira: cem lingotes de ouro. Na grande cisterna do pátio do peristilo, em um oco do solo tapado pelo sedimento em frente à abertura superior novecentos talentos. Na colina de Kojlit, vasilhas de dízimos do senhor dos povos e vestes sagradas; total dos dízimos e do tesouro: um sétimo do dízimo segundo feito impuro (?) A sua abertura está nas bordas do canal do Norte, seis côvados em direcção à fonte das abluções. Na cisterna revocada de Manos, descendo à esquerda, a uma altura de três côvados do fundo: prata, quarenta [… …] talentos. [… …]

Na cisterna repleta que está debaixo das escadas; quarenta e dois talentos. [… …] Na gruta da casa alfombrada de Yeshu (?), na plataforma terceira, sessenta e cinco lingotes de ouro. No subterrâneo que há no pátio de Matias há madeiras, e em meio a ele uma cisterna; nela há vasos com setenta talentos de prata. Na cisterna que está em frente à Porta Oriental, 8 a uma distância de quinze côvados, há vasos.E no canal que há nele: dez talentos. Na cisterna que está sob o muro do Leste em uma saliência da rocha: seis barras de prata na entrada, sob o grande umbral. 13 Na piscina ao Leste de Kojlit, no ângulo Norte, escava quatro côvados: vinte e dois talentos. [… …]

No pátio de [...], sob o ângulo Sul, 2 a nove côvados: vasos de ouro e de prata dos dízimos, cálices, taças, jarras, 4 vasos; total: seiscentos e nove. Debaixo do outro ângulo, o oriental escava dezesseis côvados: quarenta talentos de prata. [… …] No túnel que há em Miliam, ao Norte: vasos de dízimos e minhas vestimentas. Sua entrada está sob […] ângulo ocidental. Na tumba que há em Miljam, ao Norte deste, a três côvados sob a armadilha: treze talentos. Na grande cisterna que há em [...], no pilar do Norte [...] catorze talentos. No canal que vai [para...], quando avanças quarenta e um côvados: cinquenta e cinco talentos de prata. [… …]. Entre os dois edifícios que há no vale de Akon, no meio deles, escava três côvados: há duas vasilhas cheias de prata. No túnel de terra que há à borda do Asla: duzentos.»

OS MANUSCRITOS DO MAR MORTO

A distância entre Jerusalém e Qumran é de 45 km. A distância entre Jerusalém e Massada são 103 Km. São pormenores, mas de qualquer forma importa referir. De qualquer forma, se menciono estes dois locais do Deserto de Judá, é porque foi neles que se encontraram os documentos mais preciosos, por respeitarem aos Essénios, de que pouco se conhecia e muito se ficou então a saber.

Sublinho que os documentos de Qumran, bem como os de Massada fazem parte do acervo conhecido como Manuscritos do Mar Morto. São manuscritos do Mar Morto, não são os Manuscritos do Mar Morto. Tão só isto.

Florentino García Martinez, na sua obra TEXTOS DE QUMRAN, na introdução da mesma, diz o seguinte:

«Os achados acidentais e a exploração sistemática das ruínas e das grutas dos diversos Wadis do Deserto de Judá proporcionaram ao longo dos últimos 40 anos um grande número de manuscritos de épocas e características diversas. Todos eles são conhecidos como "os manuscritos do Mar Morto", e todos foram, ou serão no futuro, publicados na série Discoveries in the Judaean Desert, da Clarendon Press, de Oxford ou na série dedicada aos manuscritos procedentes das escavações israelitas preparada pelo Santuário do Livro e pelo Museu de Israel. Todos estes manuscritos foram agrupados em colecções segundo o seu lugar de origem, independentemente do facto de terem sido achados in situ pelos arqueólogos ou de terem sido adquiridos no florescente mercado de antiguidades».

terça-feira, junho 11, 2019

NATATORIALOGIA

11.06.2019
O jovem professor coleccionava títulos académicos como especulador de bolsa acções da banca. Merecia, sem dúvida, estudava bastante e era muito inteligente. Era dos poucos em toda a Índia que dominava à-vontade e por inteiro as mais ousadas hipóteses das altas ciências.
Os seus alunos deliciavam-se a ouvi-lo dissertar sobre Física Quântica, Relatividade, Buracos Negros e outros hermetismos que tais; nisto especulava muito, que na bolsa não.
Um dia, empreendeu uma viagem num vetusto navio de cabotagem, com a finalidade de ir dar uma palestra numa cidade próxima. Instalou-se num pequeno camarote, notando que da parte dos marinheiros a reverência era enorme. Ele não ouvia, mas os marinheiros murmuravam entre si:
– É muito jovem, mas é um verdadeiro sábio…
Um velho marinheiro, de longas barbas e pele curtida por ventos e marés, deslocava-se bem mais do que o necessário ao camarote do jovem professor, zelando pelo seu bem-estar. Demorava-se ali quanto podia para lhe beber as belas e sábias palavras, e dizia para consigo: «que erudição, santo Deus».
Certa noite, pergunta o Professor ao velho marinheiro:
– Ancião, já alguma vez estudaste Geografia?
– Não, senhor. De que se trata?
– É ciência que estuda a Terra na sua forma, acidentes físicos, clima, produção, populações, divisões políticas, etc.
– Não, meu senhor, eu mal sei juntar as letras…
– Ancião, fica sabendo que por isso desperdiçaste um quarto da tua vida.
Noutra noite, depois de uma longa prosa, o professor pergunta:
– Ancião, por acaso estudaste Oceanografia?
– Oceanografia? O que é isso, meu senhor?
– É a ciência descritiva do oceano, dos seres que o povoam e dos seus produtos; tu que ganhas a vida no mar devias saber. Assim, sempre te digo que desperdiçaste outro quarto da tua vida.
O velho marinheiro cofiava a barba branca e farta e murmurava:
– Pois é, senhor professor, foi assim que desperdicei metade da minha vida. Não estudei não senhor.
Na noite seguinte, depois de mais uma longa conversa de sentido único, diz o professor:
– Sabes Ancião, se este barco fosse uma partícula atómica, nunca saberíamos em que lugar se encontrava, qualquer lugar que lhe atribuíssemos era apenas uma probabilidade de entre infinitas outras. E mais: podia estar em dois portos diferentes ao mesmo tempo. E por falar em tempo: se este barco fosse um submarino, o tempo corria para nós mais depressa à superfície do que no fundo do mar. Nunca estudaste Relatividade, Física Quântica, Princípio da Incerteza.
– Não, meu Senhor, eu sou um analfabeto. Eu nem sequer frequentei a escola, aprendi a juntar as letras com o meu pai…
– Ancião, lamento, mas desperdiçaste outro quarto da tua vida.
Triste, acabrunhado, o velho marinheiro saiu dali amargas reflexões. Se aquele professor tão sábio, tão erudito dizia que ele tinha desperdiçado três quartos da vida é porque era verdade. É uma grande tristeza não sabermos todos estas coisas tão elevadas.
Passados uns dias, já a poucas milhas do destino, levanta-se uma terrível tempestade e o barco começa a meter água. O velho marinheiro corre para o camarote do jovem erudito gritando:
– Senhor Professor, Senhor Professor, por acaso aprendeu na natatorialogia?
– Que diacho é isso, Ancião?
– É a ciência de aprender a nadar. O barco bateu numa rocha, está a afundar-se, quem souber nadar alcança facilmente a praia, mas quem não souber vai afogar-se. Se não sabe nadar, lamento, mas acaba de desperdiçar cem por cento da sua vida.
ABDUL CADRE
Inspirado numa história oriental inserida no livro The Art of Living, de William Hart

quarta-feira, abril 03, 2019

EREMITAS, EREMITÉRIOS E MOSTEIROS

A ideia que formei acerca do assunto resultou dos seguintes pressupostos: se os humanos não tivessem crescido em número – lembremos o crescei e multiplicai-vos – não nos teríamos organizado em grupo, obviamente; sem o grupo (sem os grupos) não teríamos desenvolvido a fala, a linguagem, criado idiomas; sem a fala e os idiomas, instrumentos de comunicação por excelência não teríamos desenvolvido a razão – os raciocínios seriam idênticos aos dos primatas – e assim não construiríamos conceitos partilhados, nem saberes comuns, nem ideias, nem crenças. Se for atendível quanto acabo de expor, convenhamos que não só não falávamos de Deus – para afirmar ou negar – como não tínhamos religiões e, por maioria de razão, não precisaríamos de mosteiros, seria um absurdo. Se eremitas houvesse, não seria para buscar e encontrar Deus, mas por misantropia. Entendo que o homem se desenvolve humanamente em cooperação, que deve a todos os outros – aos que estão no mundo e aos que já não estão – tudo aquilo que é e tudo o aquilo que será.

Num livro meu, que deve sair ainda este mês, escrevi o seguinte:

Os dedos arrepiam os segredos

que a pele esconde;

a natureza deplora

a freira que de manhã chora

o orgasmo da noite

que mais ninguém lembra.

Penso que isto resume bem a minha não simpatia para com modos de vida feitos em ambientes de clausura, concentracionários, presumidamente indutores claustrofóbicos.

No Ocidente, os conventos (nomenclatura herdada do Império Romano), ou mosteiros (na etimologia grega monastetérion – latina monasteriu) têm a sua origem nas experiências ditas místicas dos padres do deserto, no Egipto, no século III da nossa era. Na Europa a prática acabou por ganhar adeptos, mas, faltando-lhe os desertos, sítios ermos, longe dos centros buliçosos, especialmente nas montanhas e nas florestas serviram perfeitamente para o fim pretendido, o isolamento proporcionador do silêncio, meditação e contemplação. Mas havia um obstáculo, a impossibilidade de conciliar a solidão total com as exigências vitais do corpo. surge a ideia de comunidade, surgem os cenobitas, a solidão dos cenobitas, solidão em comum, embrião dos conventos.

Falar-se de padres eremitas ou cenobitas parece-me paradoxal, pois é suposto que o padre esteja junto dos fiéis para os acompanhar, guiar e aconselhar. Padre significa pai e não é suposto que um pai abandone os seus filhos.

No Oriente, especialmente entre hindus, cultiva-se ainda a ideia de que o homem avisado deve corresponder a três etapas sucessivas da sua vida: uma primeira voltada para a maturação e a aprendizagem, uma segunda para constituir família e servir a sociedade, e a terceira para meditar e preparar-se para o momento de abandonar o corpo.

Os chamados «homens santos» da Índia parece que desprezavam todas as etapas de crescimento e realização, sendo vulgar dedicarem-se ao mais rigoroso ascetismo, sendo o ascetismo de muitos de uma violência inaudita sobre si próprios. Buda percorreu todos os caminhos de busca do seu tempo e lugar, inclusive o mais severo ascetismo, vindo a concluir que todos esses caminhos eram uma inutilidade. Ao abandoná-los, ao desistir de toda a busca, rendeu-se à vida, sentou-se à sombra da árvore baniana e, dizem os seus seguidores, nesse preciso momento atingiu a iluminação.

Krishnamurti dizia amiúde, e um dos seus livros tem precisamente esse título, que a Verdade é uma terra sem caminhos. Para Buda, a finalidade da vida era fazer cessar todo o sofrimento, pôr termo ao Samsara, o fluxo incessante dos renascimentos.

Os eremitas cristão parece que não terão entendido devidamente a essência da ideia cristã: amar o próximo como a nós mesmos, amar o próprio inimigo. Não entenderam que para isto é fundamental estar no mundo, o que não implica pertencer-lhe. Viver, estar no mundo, não fugir, não se esconder. Erro grave foi autoconvencerem-se que se escondiam do mundo por boas razões, para encontrar Deus, mas não foi por isso exactamente, foi sobretudo para fugir aos apelos da carne, mormente o desejo sexual, que a patrística transformou em pecado, dando desta forma ao mundo dois deuses: o do corpo, que era o diabo e o outro das boas coisas, o Bom Deus.

Dizia Goncourt (1822-1896) que «de todas as aberrações sexuais a mais singular talvez seja a castidade».

Não vale a pena fugir do mundo, porque o mundo nos encontra, inexoravelmente, mesmo que nos escondamos no mais secreto dos eremitérios. De qualquer forma, é certamente em profunda solidão que nos encontramos a nós próprios e expandimos a consciência. Ao expandi-la, paradoxalmente, não estamos sós, dado que nos sentimos um com todos os seres. É aqui que corremos o grande perigo de entrarmos na grande ilusão de Deus, quando o desejável seria o fim de todas as ilusões, e todas inclui a ilusão de Deus, o fim de toda a separatividade. Tal desiderato, num convento, num ermitério pode – quem sabe? – ser possível, mas duvido, porque o que me parece evidente é que a grande possibilidade é a loucura, a alienação.

Quando falo na ilusão de Deus, que fique claro que se trata do que nos habituaram a crer. Tudo o que se diga de Deus não é o que se sabe, é apenas o que se diz, é aquilo em que fomos condicionados. É preciso acabar com a submissão aos modelos, porque os modelos são apenas antolhos que nos impedem de ver quem somos, de ser quem somos.

Pessoa dizia – e isto não é um modelo para aceitar, mas ideias para reflexão – que para atingir a iluminação seria necessário vencer o mundo, a carne e o diabo. Diabo entenda-se como a força em nós que nos divide, como seja a separação da Razão e do Coração. A carne é tudo aquilo que nos vem dos baixos instintos, que são o inferno, e que devemos sublimar, se queremos ser humanos e não bichos. O mundo é tudo o que não nos deixa ser quem somos, a ilusão do ter, o não nos apercebermos que o que temos nos tem igual e reciprocamente.

Podemos expandir a nossa consciência – e se calhar não o podemos de outra maneira – no mundo concreto e dolorido, na nossa particular circunstância; meditar no meio do ruido, sentir por dentro a multidão, mas não pertencer ao mundo nem à. multidão.

É importante que estejamos aqui, mas não é importante que saibam que estivemos. Se queremos acordar, ou se julgamos estar já despertos, não precisamos de fazer nada que se veja ou que se saiba, basta que adoptemos a postura do catalisador. Nos processos químicos, o catalisador não faz parte da composição, mas sem ele a composição não se faz.

quarta-feira, janeiro 09, 2019

UM OLHAR SOBRE A CONTINGÊNCIA

Limitados Sentidos Temos

"Nossa psicologia pessoal é apenas uma pele física, uma ondulaçãozinha na superfície do oceano da psicologia colectiva. 0 factor poderoso, o factor que nos modifica toda a vida, que modifica a superfície do nosso mundo conhecido, que faz história, é a psicologia colectiva, e o inconsciente colectivo. move-se de acordo com leis inteiramente diferentes das que nos regem a ' consciência".

JUNG in, Psicologia Analítica

No passado dia 8, no programa televisivo CONVERSA AFIADA, de Joaquim Letria, o tema era Espiritismo, ou coisa semelhante. De quanto ali se disse bem se poderia resumir, utilizando as últimas palavras de um dos entrevistados, o Padre Fontes: "penso que as pessoas que tinham dúvidas ficaram com elas, ou com mais ainda. Eu penso o mesmo, mas estou convencido que tal não se deveu a falta de tempo para apresentar o assunto, antes a uma confusão de intenções, de que sobressaiu o confronto peregrino de duas coisas perfeitamente irreconciliáveis, pelo menos na época presente: Ciência e Religião. Queria o Dr. Divaldo Ferreira provar pelo positivismo científico a irrefutabilidade do espiritismo e do outro lado dizia o médico presente, de que não recordo o nome, que nada havia que provasse a existência da vida para além da morte. Para o Padre Fontes, visões são visões, não têm qualquer validade probatória, nem mesmo as de Lúcia, que só para eia eram válidas, já que nem o Francisco as teve, apesar de a acompanhar.

Pois é isto, sem sombra de dúvida, aquilo a que se pode chamar dialogo; monólogos intermináveis onde ninguém se converte e todos regressam da peleja com as mesmíssimas ideias com que para ié foram, frustrados talvez por não terem vencido o adversário, justificando com um sorriso amarelo o exercício das liberdades democráticas suportadas, ou desculpando-se mesmo, que o que é preciso é competir. Nem eles aprenderam, nem nós. Do meu ponto de vista, tal era inevitável, por uma razão muito simples: o espiritista não podia provar de ciência o que só ele subjectivamente experimentava; o padre não podia provar o que a Igreja condena e tão ferozmente perseguiu de Niceia até tempos bem recentes e o médico, que só acredita no que pesa ou no que corta, estava ali precisamente para dizer que tudo o que não é ciência é charlatanice. Ou seja: a paixão, que não se pesa, o amor, que não se corta e a saudade que não se mede, são coisas perfeitamente inexistentes, porque o equivoco fundamental é querermos provar racionalmente o que é do domínio do irracional. Eis a tendência persistente e doentia de nos limitarmos: não damos a César o que é de Cesar, fazemos exclusões. Isto é valido para a discussão em apreço, para outras similares que na pantalha têm passado e é válido para as nossas discussões filosóficas. Nestas, os argumentos e contra-argumentos só nos devem servir no sentido da conversão e como exercício insubstituível para uma desejável e profícua abertura de mente.

De qualquer forma, se me permitem um conselho, não tentem convencer ninguém da verdade da reencarnação. nem nela acrediteis pelos argumentos dos livros. Tomai as opiniões que puderdes, mas procurai sobretudo encontrar a vossa, sem esquecer que de nada vale ser como São Tomé, porque mesmo vendo e apalpando não temos a garantia de que os sentidos nos não enganem. Fizeram-se estudos experimentais em universidades norte-americanas onde se pedia a grupos de estudantes voluntários para caminharem ao longo dum comprido corredor e que parassem sempre que se acendesse uma lâmpada e metade dos estudantes paravam convencidos de terem visto uma luz acender-se. Também se utilizaram máquinas fictícias, isto e, máquinas a que se atribuíam efeitos de calor ou de passagem de corrente eléctrica completamente inexistentes e noventa por cento dos estudantes confirmavam os "efeitos". Há miragens e alucinações. Há o desejo de ver e o desejo de não ver.

Será que o encarnado existe? Quem tem razão, nós ou os daltónicos? Que sabemos nós do funcionamento das nossas portas privilegiadas de acesso ao mundo de relação?

II

Ora vejamos. Se colocarmos um par de auscultadores, sendo que de um lado recebemos uma mensagem in­coerente e do outro uma mensagem devidamente organizada, a nossa atenção só capta aquela que a nossa educação preconce­beu. 0 nosso pequeno eu material é um produto histórico con­dicionado entre o medo e a recompensa. Neste plano, como muito bem disse Pavlov, somos reflexo condicionado: agimos como nos mandam, como mos amestraram e os homens acordados são tão poucos que dificilmente se cruzam dois numa vida. Para despertar, talvez seja bom não nos embriagarmos de certezas obtidas através dos nossos limitados sentidos, antes saber da amplitude de tais limitações através do exer­cício da razão. Mas à razão limita-a o frio da lógica e condiciona-a o mundo das necessidades e utilidades. Depois, a nossa tilinte é dupla e dificilmente se alcança o plano do pensamento puro. Esta dificuldade não advém dos tais nove décimos do cérebro que não se utilizam. Convém, desmistificar essa história: cérebro é cérebro e mente é mente; são órgãos (digamos assim, para facilitar) que pertencem a planos claramente diferenciados do ser. O cérebro tem o desenvolvimento perfeitamente adequado para coordenar as funções que lhe são próprias e servir de emissor/receptor dos pensamentos que nos estão mais à mão. Contrariamente ao que muitos pensam, nunca foi estabelecida irrefutavelmente uma razão directa entre a inteligência e a cor ou o tamanho do cérebro, por mais que alguns homens de ciência argumentem utilizando o que não consideram válido quando na boca de parapsicólogos e quejandos. Mas, para analisarmos o fenómeno da inteligência, nada melhor do que uma história verdadeira que a ciência bem conhece.

Há uma espécie de vespa que alimenta as suas larvas exclusivamente duma dada espécie de tarântula. Põe muito poucos ovos, mas por cada um que está para pôr sai à caça duma dessas enormes e venenosas aranhas. Ora, a tarântula é várias vezes mais corpulenta que a vespa e perfeitamente apta a enfrentá-la com êxito, tendo ainda a seu favor uma consistente e impenetrável carapaça. No entanto, não se sabe porque prodígio, a vespa consegue enterrar o seu ferrão com precisão cirúrgica num ponto frágil onde se articulam as patas e atingir a vítima num ponto vital, causando-lhe atordoamento e paralisia momentâ­nea, não a matando, porque de nada lhe serviria morta. Previamente, a destemida caçadora havia aberto uma cova de cerca de vinte e cinco centímetros de profundidade, onde enfia a tarântula de modo a que fique impossibilitada de se mover passado o atordoamento. Depois, calmamente põe o seu ovo e prende-o ao abdómen da vítima. Mais tarde, quando a larva sai do invólucro, tem um manjar fresco à sua disposi­ção, como frescos estão os líquidos do corpo da sua hospedeira, que vai devorando sabiamente sem lhe causar a morte durante as longas semanas do seu desenvolvimento. Deixa para o fim os órgãos vitais. Quando completa o seu desenvolvimento, sai em voo pronta com o seu ferrão para quando chegar a hora de nova caçada.

Quem ensinou estes prodígios à vespa, que não pode falhar?

Se esta espécie tivesse falhado, não tinha chegado aos nossos dias e teríamos eventualmente o registo fóssil da sua passagem como modelo falhado de vida. Temos tendência para, sem mais lobrigarmos que o mais denso de nós, por aí nos julgarmos o centro de tudo, só porque nos cabe a ilusão de gerirmos autonomamente uma inteligência muito própria, com que remendamos os nossos erros, mas não está garantido que um deles não seja fatal, vindo outra mais apta forme do anjo caído estudar o fóssil que por aí fique como recordação e aviso.

In ALVORADA

Nº 1 – 1992 Equinócio da Primavera