quarta-feira, abril 03, 2019

EREMITAS, EREMITÉRIOS E MOSTEIROS

A ideia que formei acerca do assunto resultou dos seguintes pressupostos: se os humanos não tivessem crescido em número – lembremos o crescei e multiplicai-vos – não nos teríamos organizado em grupo, obviamente; sem o grupo (sem os grupos) não teríamos desenvolvido a fala, a linguagem, criado idiomas; sem a fala e os idiomas, instrumentos de comunicação por excelência não teríamos desenvolvido a razão – os raciocínios seriam idênticos aos dos primatas – e assim não construiríamos conceitos partilhados, nem saberes comuns, nem ideias, nem crenças. Se for atendível quanto acabo de expor, convenhamos que não só não falávamos de Deus – para afirmar ou negar – como não tínhamos religiões e, por maioria de razão, não precisaríamos de mosteiros, seria um absurdo. Se eremitas houvesse, não seria para buscar e encontrar Deus, mas por misantropia. Entendo que o homem se desenvolve humanamente em cooperação, que deve a todos os outros – aos que estão no mundo e aos que já não estão – tudo aquilo que é e tudo o aquilo que será.

Num livro meu, que deve sair ainda este mês, escrevi o seguinte:

Os dedos arrepiam os segredos

que a pele esconde;

a natureza deplora

a freira que de manhã chora

o orgasmo da noite

que mais ninguém lembra.

Penso que isto resume bem a minha não simpatia para com modos de vida feitos em ambientes de clausura, concentracionários, presumidamente indutores claustrofóbicos.

No Ocidente, os conventos (nomenclatura herdada do Império Romano), ou mosteiros (na etimologia grega monastetérion – latina monasteriu) têm a sua origem nas experiências ditas místicas dos padres do deserto, no Egipto, no século III da nossa era. Na Europa a prática acabou por ganhar adeptos, mas, faltando-lhe os desertos, sítios ermos, longe dos centros buliçosos, especialmente nas montanhas e nas florestas serviram perfeitamente para o fim pretendido, o isolamento proporcionador do silêncio, meditação e contemplação. Mas havia um obstáculo, a impossibilidade de conciliar a solidão total com as exigências vitais do corpo. surge a ideia de comunidade, surgem os cenobitas, a solidão dos cenobitas, solidão em comum, embrião dos conventos.

Falar-se de padres eremitas ou cenobitas parece-me paradoxal, pois é suposto que o padre esteja junto dos fiéis para os acompanhar, guiar e aconselhar. Padre significa pai e não é suposto que um pai abandone os seus filhos.

No Oriente, especialmente entre hindus, cultiva-se ainda a ideia de que o homem avisado deve corresponder a três etapas sucessivas da sua vida: uma primeira voltada para a maturação e a aprendizagem, uma segunda para constituir família e servir a sociedade, e a terceira para meditar e preparar-se para o momento de abandonar o corpo.

Os chamados «homens santos» da Índia parece que desprezavam todas as etapas de crescimento e realização, sendo vulgar dedicarem-se ao mais rigoroso ascetismo, sendo o ascetismo de muitos de uma violência inaudita sobre si próprios. Buda percorreu todos os caminhos de busca do seu tempo e lugar, inclusive o mais severo ascetismo, vindo a concluir que todos esses caminhos eram uma inutilidade. Ao abandoná-los, ao desistir de toda a busca, rendeu-se à vida, sentou-se à sombra da árvore baniana e, dizem os seus seguidores, nesse preciso momento atingiu a iluminação.

Krishnamurti dizia amiúde, e um dos seus livros tem precisamente esse título, que a Verdade é uma terra sem caminhos. Para Buda, a finalidade da vida era fazer cessar todo o sofrimento, pôr termo ao Samsara, o fluxo incessante dos renascimentos.

Os eremitas cristão parece que não terão entendido devidamente a essência da ideia cristã: amar o próximo como a nós mesmos, amar o próprio inimigo. Não entenderam que para isto é fundamental estar no mundo, o que não implica pertencer-lhe. Viver, estar no mundo, não fugir, não se esconder. Erro grave foi autoconvencerem-se que se escondiam do mundo por boas razões, para encontrar Deus, mas não foi por isso exactamente, foi sobretudo para fugir aos apelos da carne, mormente o desejo sexual, que a patrística transformou em pecado, dando desta forma ao mundo dois deuses: o do corpo, que era o diabo e o outro das boas coisas, o Bom Deus.

Dizia Goncourt (1822-1896) que «de todas as aberrações sexuais a mais singular talvez seja a castidade».

Não vale a pena fugir do mundo, porque o mundo nos encontra, inexoravelmente, mesmo que nos escondamos no mais secreto dos eremitérios. De qualquer forma, é certamente em profunda solidão que nos encontramos a nós próprios e expandimos a consciência. Ao expandi-la, paradoxalmente, não estamos sós, dado que nos sentimos um com todos os seres. É aqui que corremos o grande perigo de entrarmos na grande ilusão de Deus, quando o desejável seria o fim de todas as ilusões, e todas inclui a ilusão de Deus, o fim de toda a separatividade. Tal desiderato, num convento, num ermitério pode – quem sabe? – ser possível, mas duvido, porque o que me parece evidente é que a grande possibilidade é a loucura, a alienação.

Quando falo na ilusão de Deus, que fique claro que se trata do que nos habituaram a crer. Tudo o que se diga de Deus não é o que se sabe, é apenas o que se diz, é aquilo em que fomos condicionados. É preciso acabar com a submissão aos modelos, porque os modelos são apenas antolhos que nos impedem de ver quem somos, de ser quem somos.

Pessoa dizia – e isto não é um modelo para aceitar, mas ideias para reflexão – que para atingir a iluminação seria necessário vencer o mundo, a carne e o diabo. Diabo entenda-se como a força em nós que nos divide, como seja a separação da Razão e do Coração. A carne é tudo aquilo que nos vem dos baixos instintos, que são o inferno, e que devemos sublimar, se queremos ser humanos e não bichos. O mundo é tudo o que não nos deixa ser quem somos, a ilusão do ter, o não nos apercebermos que o que temos nos tem igual e reciprocamente.

Podemos expandir a nossa consciência – e se calhar não o podemos de outra maneira – no mundo concreto e dolorido, na nossa particular circunstância; meditar no meio do ruido, sentir por dentro a multidão, mas não pertencer ao mundo nem à. multidão.

É importante que estejamos aqui, mas não é importante que saibam que estivemos. Se queremos acordar, ou se julgamos estar já despertos, não precisamos de fazer nada que se veja ou que se saiba, basta que adoptemos a postura do catalisador. Nos processos químicos, o catalisador não faz parte da composição, mas sem ele a composição não se faz.