sábado, dezembro 24, 2016

O EU E O EGO PELAS RUAS DA AMARGURA

 

Vendas Novas 20 de Outubro de 2016

Para os rosacruzes, o ego é o nosso eu objectivo, isto é, o «eu» com o qual nos identificamos quotidianamente. A alma é bem outra coisa, embora por vezes se lhe chame «Eu espiritual». Seguindo a tradição oriental, há quem lhe chame centelha divina, ou eu superior.

Os jargões próprios de cada área de conhecimento não conseguem ser, tanto quanto os seus utilizadores gostariam que fossem, pessoais e intransmissíveis. Uma ou outra área quase o consegue, mas a regra é a interpenetração. Já repararam como conceitos económicos são usados a propósito e a despropósito de tudo e de nada, como por exemplo mais valia?

E falar de quanta? É uma delícia. Não há quem confesse que não sabe do que se trata.

Nas conversas com os meus amigos ligados ao esoterismo (rosacruzes incluídos) muito me cansa, para além das confusões de nomenclaturas, o uso de certos convencimentos mecânicos e alguns preconceitos que roçam os complexos de superioridade. Por vezes encontro-me a pensar que levam pouco a sério a principal qualidade de um buscador: ser um ponto de interrogação que caminha, não um ponto de exclamação que se pavoneia.

No campo do esoterismo, pouco interessa a quantidade do que se possa saber; a forma, a qualidade, a especificidade do que se sabe é que importa. Encontrar aqui pretensas superioridades, dá que pensar. Antes de afirmarem coisas, seria bom procurarem múltiplas perspectivas e assimilarem a humildade de quem está em actualização permanente. Já viram o que acontece com os programas de computador? Sempre em actualização. Como dizia o grande vate, toda a vida é composta de mudança. Tudo muda quando mudamos. Ou muda o nosso entendimento. Ressalve-se que não deveríamos olhar o esoterismo como apenas um intelectualismo.

A falta de respeito que comummente se tem nestes meios pelo saber académico só tem comparação com a mesma falta de respeito que os meios académicos nutrem pelos conhecimentos esotéricos, mas creio que tal desprimor se justifica bem mais por parte destes do que daqueles, dado que uns – os académicos – se esforçam por saber e por mudar, enquanto os outros se agarram ao que julgam saber, sem se preocuparem com outros saberes, numa auto-suficiência imprópria de quem busca. Aquelas frases feitas de que os esoteristas sempre souberam, ou o saber oficial não entende são de uma pesporrência um tanto irritante. Pregar-se depois a humildade é de bradar aos céus. A humildade é coisa que só podemos exigir de nós próprios, não dos outros, desde que afinal não seja usada como o seu contrário. A humildade não cabe sequer em intenções, é uma prática de poucos, mas nestes poucos nem sempre é virtude.

Digamos então que o conhecimento não é nem pode ser um exclusivo das academias. Além disto, deve entender-se que o conhecimento não é a verdade, faz parte da sua busca, mas não é a verdade. A verdade é o horizonte e, como tal, nunca se alcança, apenas se persegue. Que se desiludam os esoteristas que pensam ter alcançado o horizonte. Lastimemo-los e lastimemos também os académicos que limitam o conhecimento estritamente ao mensurável, porque o que é verdadeiramente importante na vida não se mede, sente-se apenas.

Por vezes, um certo voluntarismo dos esoteristas ultrapassa o aconselhável bom-senso; o uso de jargões da ciência, deslocando-lhes o sentido ou dando-lhes sentido outro, justificar-se-iam se objectivasse a clareza ou o enriquecimento dos conceitos, mas invariavelmente é o contrário que acontece.

Já repararam, por exemplo, como à revelia da Psicologia, se persiste em distinguir Ego de Eu, o que faz Freud e Jung darem voltas na tumba, porque o que distingue verdadeiramente ego de eu é apenas a origem etimológica, respectivamente grega e latina. Assim, por razões específicas e necessárias é bom que o termo EGO fique entregue às ciências psíquicas e se deixe o EU para a linguagem comum e a literatura. Afinal, toda a gente sabe o que é o eu, mesmo que não seja capaz de o definir. Não há qualquer benefício em complicar e confundir: eu é o que nos permite tratar o outro por tu. É assim na Gramática, na Psicologia, na vida,

Querer distinguir ego de eu, para falar do objectivo e do subjectivo não aquenta nem arrefenta. Por outro lado, para referirmos acepções transpessoais, há sempre o recurso aos qualificativos. Podemos ver isso, por exemplo, ao falar-se de morte clínica, morte cerebral, etc. Assim, quando ouvimos alguém dizer «eu superior», percebemos evidentemente o que se quer referir. Todavia, se é alma que se pretende invocar, por que se não diz?

Por favor, meus amigos, deixem o ego, o self, o id e quejandos com aqueles a quem faz imenso jeito e não usurpem nem deturpem, porque não é necessário.

ABDUL CADRE

sábado, dezembro 10, 2016

PARTICULARIDADES COMUNS

 

Vendas Novas, 2 de Junho de 2005

Na vida só temos duas horas que são realmente nossas: a hora de nascer e a hora de morrer. Todas as outras são comuns, colectivas, mais dos outros do que de nós. E pouco importantes, nem sequer são horas, são minutinhos com as suas minudências.

Os pingos de chuva são muito aborrecidos, porque parecem todos iguais; divertida é a paisagem que os pingos de chuva reverdecem; divertida por ser vária, por ser plural, por nunca se despedir de nós.

Nós é que nos despedimos da paisagem e isso acontece quando julgamos que não lhe pertencemos ou que somos os culpados da queda da folha.

Abdul Cadre

terça-feira, setembro 06, 2016

REFLEXÕES A-CIENTÍFICAS

 

V. N. 4 Set 2016

Querida Soror,

A sua exposição «postada» (como agora se diz) no FB, em 1 do corrente está muito bem-feita. Assim, o que se segue não é uma crítica nem suprimento para qualquer lacuna, trata-se tão-só de um conjunto de reflexões a partir dos seus pontos de vista.

A primeira reflexão é que um dos grandes problemas de quem se move no campo da espiritualidade é querer conciliar as nomenclaturas do que se crê e sabe neste campo com aquilo que o pensamento comum diz por dizer e o que a ciência com empenho prova. Desta forma, o termo consciência, por exemplo, para um espiritualista tem um significado incompreensível para as massas que falam pelo eco do que ouviram e um significado controverso para a ciência dos pesos e medidas.

Quando um popular diz para outro «és um inconsciente» ou diz de outro «fulano é muito consciente», não se refere à consciência como entendida pelos espiritualistas nem à consciência proposta pelos cerebristas das ciências de proveta, que muito sabem e dissecam mas não nos conseguem explicar por que as amibas, não tendo cérebro, todavia têm consciência, procuram alimento, nadam, reproduzem-se e aprendem.

Para colmatar este despropósito das nomenclaturas, pensam muitos que seria bom que os espiritualistas pudessem ter e usar jargões inequívocos, mas talvez isto não seja possível nem útil. As tentativas havidas que se conhecem têm saído goradas. Então, uma solução mais cómoda poderá ser esta: procurarmos usar a nosso favor os termos da psicologia, mais concretamente fazendo o percurso psicanálise, psicologia das profundidades, psicologia humanista e psicologia transpessoal, relegando, por razões óbvias tudo o que se prenda com o behaviorismo, dado que uma psicologia comportamental é um absurdo, contém uma contradição nos termos. Ficaria bem, talvez, na sociologia.

Também os modismos, new age ou outros, deverão merecer alguma parcimónia e, em muitos casos, a crítica ou mesmo a rejeição. Um modismo de grande uso acrítico é o de inteligência emocional, conceito atribuído a Wayne Payne, e que enfeitou a sua tese de doutoramento em 1985; daqui a crença no cientismo da coisa, Mas é muito pouco científico. Pascal conhecia muito bem a profunda separação que existe entre a inteligência e a emoção e afirmava que os dois principais sustentáculos da verdade – a razão e os sentimentos – «se enganam mutuamente» (Pensamentos – 1662). Com a sua apurada clarividência, Fernando Pessoa, que não era cientista, mas via mais de olhos fechados que a maioria, que se reivindica do saber científico, de olhos abertos, dizia que «Toda a emoção verdadeira é mentira na inteligência, pois se não dá nela. Toda a emoção verdadeira tem, portanto, uma expressão falsa. Exprimir-se é dizer o que se não sente». É por aqui que eu justifico os meus dizeres de que a palavra serve mais para mutuamente nos enganarmos do que para nos entendermos…

Mas, o que é a inteligência?

Uma brincadeira de psicólogos diz que inteligência é aquilo que os testes de inteligência medem. Sem brincadeira, uma das coisas que muitos psicólogos não conseguem entender é que, por exemplo, a estupidez não seja – porque para eles é – o contrário da inteligência. Custa-lhes aceitar que a estupidez faça parte da inteligência, que esteja nela contida; que seja uma deficiência, uma avaria na inteligência, que é o mesmo raciocínio de Santo Agostinho em relação ao bem e ao mal e que ecoa no pensamento rosa-cruz no dizer: «o mal é uma luz menor». A palavra de engano, como atrás referi, integra-se nesta lógica da deficiência, do defeito.

É evidente que isto só fará sentido para quem entenda que a inteligência, em termos absolutos, não nos pertence, embora esteja ao nosso dispor. Se aceitarmos que é assim, teremos de olhá-la como um desiderato, um desejo de perfeição que só a estupidez permite. Como é que alguém pode desejar ser inteligente se já for inteligente, ou querer ser perfeito se se julga perfeito? Só podemos querer ser inteligentes se o não formos. E aqui valem as teorias dos quanta: se por acaso observarmos a perfeição, ela deixará de estar onde a observámos. É como caminharmos para o horizonte: damos dois passos na sua direcção e ele afasta-se de nós os mesmos dois passos.

Então, recorremos às técnicas meditativas que, na maioria dos casos, não são verdadeiramente meditativas, mas reflexivas, actos de contrição, congeminações, discorrências, cogitações. A meditação exige que calemos a nossa estupidez para que a inteligência possa fluir sem tropeçar nos defeitos; exige que a nossa mente não se envenene com os nossos pensamentos. Aquilo a que chamamos evolução depende disto? Talvez. Basta que entendamos que evoluir é fazer com que a personalidade se identifique com a natureza da alma, pois que falar de evolução fora deste entendimento obriga a admitirmos o seu contrário, a involução, tal como falar de saúde implica aprendermos o que é a doença. E é assim que voltamos às explicações de Santo Agostinho sobre o bem e o mal: a doença só existe como deficiência da saúde, não tem autonomia, tal como a estupidez não tem autonomia.

De evolução também podíamos dizer, acompanhando Gurdjieff, que é passar do estado animal ao hominal, entendendo-se que o animal está condicionado pela necessidade e pelo medo, sensações que têm como resposta natural a agressão e a fuga. A mudança de estado – de reino da natureza – só é possível mediante a transformação do nosso condicionalismo bruto a uma etapa superior, onde seremos condicionados pelo amor, que é a força motriz do bem. O amor impessoal, note-se, não o apego nem a sexualidade, seus componentes menores, que aliás já nos condicionam por apelo simples e natural. Mas não se trata de aprisionar o animal que habitamos, mas de usá-lo adequada e inteligentemente.

Querida Soror, na sua exposição, o que me parece de argumentação mais frágil é o que concerne à felicidade e à identificação de mudança com a criação de consciência. Dizia Pessoa: «eu não evoluo, viajo»; e digo eu com frequência que felizes são os gatos com a barriga cheia na sua almofadinha de veludo, mas talvez não se sintam infelizes se perdem uma coisa e outra, vão em busca do conforto perdido, naturalmente.

A palavra felicidade, com a sua conotação romântica e burguesa traduz um conceito muito equívoco. Ela quer dizer o quê? Contentamento? Bem-estar? Alegria? Satisfação? Bem-aventurança? Júbilo? Plenitude? Beatitude? Felicidade ou momentos de felicidade?

No que concerne à consciência, sendo a inteligência um dos seus aspectos, teremos de argumentar como atrás fizemos para esta: a consciência é algo de global, não nos pertence; ela não evolui, ou antes, não podemos saber se sim ou não evolui, tal como o nosso gato, na sua almofadinha de veludo, não sabe se nós evoluímos ou não, porque o seu foco de consciência é a almofada, o conforto e a comida; o que ele poderá notar é se o conforto é maior ou menor que o habitual. Sendo nós a consciência que condiciona a sua consciência de gato – ambas consciências reflectidas, infundidas – o que ele julga de nós será mutatis mutandis o que nós pensamos da Consciência-Deus. Dito tudo isto de outro modo, a nossa consciência individual dizemo-la evoluindo e crescendo, ou melhor expandindo-se, quando viajamos mais e mais – como Pessoa – nesse mar inconsútil que é a Consciência Cósmica. O desejo dos rios é serem mar e o desejo do mar é acolher os rios. Este é, a meu ver, o processo de consciência e os pequenos rios que são as infusões individuais de consciência que chamamos nossa não evoluem, fluem e são mar quando podem, quando chegam ao mar, quando com o mar se identificam. E repetimos o que atrás dissemos: evoluir é fazer com que a personalidade se identifique com a alma.

Posto isto, vou tentar ser mais minucioso e preciso quanto ao meu entendimento de Alma, Consciência e, inevitavelmente de Mente. Este entendimento não será melhor do que outros bem pensados, mas parece-me bastante coerente e equilibrado. Não o tenho como proposta acabada, mas como tentativa de sintonizar os ensinamentos da ordem com as vertentes mais estritamente académicas e, em simultâneo, torná-los acessíveis a quem os procura movido pela espiritualidade.

Há muitos anos, quando nos liceus se ensinava Psicologia integrada na Filosofia, enaltecendo-se a metafísica, isto é, valorizando o conceito de alma mais do que as respostas comportamentais, dizia-se que as potências da alma eram memória, entendimento e vontade. Se a isto acrescentarmos o ensinamento rosa-cruz de que só há uma alma; que quando falamos da Alma do Homem – que é Deus no Homem – podemos estar a confundir o conceito ou a levar outros a confundirem-se. Por isso, havendo uma só Alma, teremos de vê-la como a Consciência Absoluta, a Consciência Vivente de Deus onde se aplica com todo o rigor e propriedade Memória, Entendimento e Vontade. É apropriando-nos destas três potências que logramos navegar pelos processos de consciência. Neles, podemos atender aos três graus básicos tradicionais das escolas iniciáticas: Aprendiz, Companheiro e Mestre:

- Aprendiz –» Consciência Objectiva –» sentidos físicos

- Companheiro –» Consciência Subjectiva –» pensamentos, sentimentos

- Mestre –» Consciência Supra-sensível –» êxtase, projecção psíquica

Como é evidente, o processo de consciência inicia-se pela autoconsciência, que é a reacção dos seres vivos aos influxos da Consciência Divina. É por aqui que surge o entendimento da generalidade das escolas iniciáticas de que a mente é uma elaboração e expressão do fenómeno da consciência. Eu prefiro dizer que a Mente é o papel onde a Consciência se escreve (ou inscreve).

Se tudo isto for como aqui se diz, a consciência individual (inseparável do todo que é a Consciência Cósmica) não cresce verdadeiramente e quando dizemos que se expande, ou falamos em processos alterados de consciência, o que queremos dizer – ciente ou não do facto – é que a nossa capacidade de leitura na cartilha paternal que é a Mente Cósmica cresce; que a nossa memória, o nosso entendimento e a nossa vontade se encontram em perfeita sintonia e se identificam com as potências da alma.

ABDUL CADRE