«Não podemos ser o que queremos ser, porque o que queremos ser queremo-lo no passado».
Fernando Pessoa
Vendas Novas, 8 de Outubro de 2014
Nos meios dados ao ocultismo, aceita-se com demasiada facilidade, com pouco espírito crítico crenças desconexas e até, em muitos casos, contraditórias. Digo intencionalmente ocultismo e não esoterismo porque tomo o primeiro como dogmático e o segundo com especulativo.
Por mais que se diga que acreditar não é saber, crê-se, sem prévia interrogação, no livre-arbítrio ao mesmo tempo que se aceita que os astros comandam o destino e que tudo se explica – sem explicar – pelo carma, defendido como uma lei mecânica – deste-me agora um pontapé como retribuição daquele que eu te dei numa vida anterior – e isto é rendermo-nos ao fatalismo, é demitirmo-nos do dever de agir. É, bem vistas as coisas, renegarmos o que afinal sempre acabamos por afirmar: carma, como acção e consequência, não é um perpétuo pontapear, é uma forma de ajustamentos compensatórios.
O fatalismo é curável, agindo inteligentemente; não pode compadecer-se com a falta de um propósito correcto, que é vivermos por vontade própria, não nos iludindo com o vão desejo de ser outro e não nós próprios.
É aqui que caberia dizer-se: cumpro o meu destino através da minha vontade esclarecida no seio da minha circunstância. Ou, recordando Agostinho da Silva: o meu destino é a minha liberdade.
Mas o que conviria dizer-se, mesmo que contrariando os adeptos de leituras da sina, é que o livre-arbítrio subverte qualquer fantasioso destino traçado, seja porque o vimos nas cartas, seja porque no-lo disseram escrito nos astros.
Como diz o provérbio antigo, quando estás à mesa, nada acontece à tua boca se a mão não ajudar. É que tudo se passa como se cada um de nós se integrasse num jogo de sueca: as cartas que temos na mão, o parceiro que escolhemos e os adversários que aceitámos são a nossa circunstância, isto é, as linhas do destino; a nossa contínua aprendizagem e experiência, a nossa intuição, a nossa habilidade, a nossa inteligência e a nossa vontade serão o cimento da nossa liberdade, constituirão o livre-arbítrio. É este que determina, em última instância, a sorte do jogo, contrariando ou não o que digam as cartas.
Não agir, como querem certos orientalismos, para não gerar carma, é uma completa estultícia. Quando não fazemos as coisas, são as coisas que nos fazem a nós e é batota desculparmo-nos com o destino, e que bem diziam as cartas, os astros, os búzios, etc.
E não vale a pena dizer-se – como disse um dia o sueco Stig Dagerman – que o que é perfeito labora em estado de repouso, porque é evidente que não somos perfeitos, por mais que nos esforcemos por isso. Crê-lo seria uma pesporrência tola. Aliás, os ocultistas não se cansam de dizer que andamos aqui para aprendermos. Ora, se a aprendizagem for apenas livresca, podemos recordar com proveito os dizeres de Tomás de Kempis: «quem muito lê e sabe, se não actua de acordo com o que aprendeu e sabe, é como se, convidado para mesa requintada e farta, se levantasse dela vazio e famélico». Porque, no dizer de Swami Vivekananda, «a teoria que não encontra aplicação na vida, é uma acrobacia do pensamento».
Pois bem, então estamos aqui para aprender. Muito bem. E o que significa aprender? Admitamos que aprender é ganhar experiência, o que não se deve confundir com adquirir perícia. Perito é aquele que repete o mesmo gesto tantas vezes que poucos se lhe igualam; não se trata de ser experiente, porque a experiência é plural, envolve conhecimento para além de qualquer específica habilidade. Convém chamar aqui Aldous Huxley: «a experiência não é o que aconteceu a um homem, mas o que um homem fez com o que lhe aconteceu».
Ou seja, a vontade e o livre-arbítrio sobrepõem-se ao destino.
Se chove, é bom que se abra o guarda-chuva.
Abdul Cadre